22 Mai, 2024

“Os internistas gostam de fazer urgência, mas as condições oferecidas são muito difíceis”

Lèlita Santos terminou o seu mandato como presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI). Em entrevista, falou do facto de cada vez menos jovens médicos optarem por ingressar na Medicina Interna, "não pela especialidade em si", mas pelas condições que lhes são oferecidas, nomeadamente no que diz respeito à "desorganização" dos serviços de urgência.

Quais são as expectativas para esta edição do Congresso?

Apostamos sempre muito neste evento, dado que é um momento em que a grande maioria dos internistas e internos da especialidade se encontram. Estes encontros são muito importantes para trocar ideias e experiências, bem como para conhecer avanços clínicos e científicos. Nesse sentido, o Congresso é sempre alvo de uma grande expectativa, prevalecendo o desejo de que a próxima edição seja sempre melhor.

Este ano a comissão científica elaborou um programa muitíssimo completo e apelativo. Toca em todas as áreas médicas com interesse para a Medicina Interna. O evento vai contar com palestras muito inovadoras e terá períodos em que se dá a voz aos internos, não só para discutir as suas ideias, mas depois também nas comunicações orais e nas várias apresentações de posters.

Terminou o seu mandato como presidente. Que balanço faz?

A atividade médica está em constante mudança e nos últimos anos as alterações têm surgido a um ritmo quase diário. Todos dependemos do que acontece a nível governamental, pelo que tem havido alguma instabilidade nos últimos tempos.

Infelizmente, o Serviço Nacional de Saúde tem decaído por falta de organização e de meios e a Medicina Interna tem sido uma das especialidades que mais tem sofrido com isso, tornando-se um pouco menos atrativa para os mais jovens. Este acontecimento não se deve à especialidade em si, mas sim ao facto de a parte organizacional e o peso assistencial da especialidade sobrecarregar muito os profissionais da área.

A nossa direção iniciou-se no fim de uma pandemia, o que tornou logo tudo mais difícil. Porém, tentámos, internamente, manter a sustentabilidade organizacional, funcional e financeira da SPMI. Empenhámo-nos em facultar mais formação teórica e teórica-prática aos nossos internos e aos especialistas mais jovens, em tempo útil, para que pudessem aplicar nos serviços.

Além disso, tentámos alguns contactos com a tutela em períodos menos bons que fomos ultrapassando. Igualmente, estreitámos as relações entre a nossa sociedade e outras sociedades científicas, nomeadamente aquela que nos é congénere nos cuidados de saúde primários, a Medicina Geral e Familiar (MGF), que é também uma especialidade generalista, mas nos cuidados de ambulatório, sobretudo do doente crónico.

Também fizemos ligações com sociedades científicas internacionais, nomeadamente do sul da Europa, Espanha, Itália e Grécia, que têm uma Medicina Interna muito semelhante, à nossa. Compreendemo-nos e tentámos, a nível europeu, através da Federação Europeia de Medicina Interna, fazer valer a nossa forma de pensar daquilo que é a esta especialidade. Tivemos um papel muito importante de intervir de maneira a mostrar a necessidade e a importância da Medicina Interna dentro dos hospitais, enquanto especialidade base.

Como avalia a situação da especialidade tendo em conta, não só, a atual crise que se está a fazer sentir no SNS, como também, e tal como referiu, o facto de os jovens médicos estarem a preferir outras especialidades em detrimento da Medicina Interna?

Penso que, para já, não é tão preocupante como se poderia pensar. Ainda assim, é preciso prevenir antecipadamente esta situação que, aliás, já devia estar prevenida há muito tempo, uma vez que se adivinhava.

Sendo uma especialidade muito generalista no hospital, a Medicina Interna é muito solicitada por todas as outras especialidades, quer médicas, quer cirúrgicas, para consultoria, integração em equipas multidisciplinares, entre outras tarefas que, por vezes, não fazem parte da atividade de um serviço de Medicina Interna. O internista acaba por se dispersar em tarefas que são relevantes, e nas quais consegue dar um aporte extraordinariamente importante para os doentes, mas que fazem com que acabe por esvaziar um pouco os serviços, dando uma ideia de desorganização aos mesmos.

Na mesma linha de pensamento, temos também a situação da desorganização que se faz sentir ao nível das urgências. A par com a Cirurgia Geral, a Medicina Interna é uma das especialidades que cobre a maioria ou até a totalidade dos períodos de urgência em todos os hospitais do país. Não existem hospitais que não tenham Medicina Interna e, tendo urgência, que não tenham esta especialidade incluída, o que leva a que os profissionais tenham um peso assistencial e de horário muito grande, o que, mais uma vez, onera o que é feito dentro dos serviços.

As urgências estão realmente muito pesadas e desorganizadas e não há, pelo menos para já, um plano de organização de fundo e que tenha resultados a médio e longo prazo. Aplicam-se soluções muito pontuais nas alturas de grandes crises, como os planos de contingência sazonais ou as contratações avulsas em períodos de maior afluxo de doentes, mas depois não existe uma visão a longo prazo e isso também é algo difícil para a Medicina Interna.

Além disso, há um outro aspeto muito importante, e temos de falar nele com clareza: os internistas não são bem remunerados. Aliás, como todos os médicos, mas os internistas sentem-se particularmente pouco valorizados. Isto aplica-se, quer em termos da valorização real por parte da tutela de atribuir o devido valor que esta especialidade tem, nomeadamente através da sua imprescindibilidade no Serviço Nacional de Saúde, mas também em termos remuneratórios e de incentivos a uma prática clínica estimulada. É preciso criar uma ‘discriminação positiva’ justa para os internistas.

“A remuneração e os incentivos são importantes e espero que em breve a tutela pense nisso e comece realmente a resolver o problema.”

 

Foi criado um grupo de trabalho relativo ao enquadramento da medicina interna no futuro. Como é que deve ser este enquadramento?

Este grupo foi criado pela Ordem dos Médicos em conjunto com a SPMI, e inclui cinco membros da Sociedade e outros cinco do Colégio de Especialidade da Ordem dos Médicos. No fundo, pretendemos enquadrar a Medicina Interna através do reconhecimento do perfil próprio do internista como o médico que vê o doente complexo, com multimorbilidades, que o segue no internamento e na consulta, nos hospitais de dia, na hospitalização domiciliária, enfim, em todos os locais em que o doente faz o seu percurso, não esquecendo a urgência, sempre de uma forma estruturada.

Por outro lado, o grupo fez a revisão dos critérios para a formação. Atualmente, temos um programa de formação que foi revisto em 2018, foi enviado ao Ministério da Saúde e ainda nem sequer foi aprovado, e que agora, evidentemente, já precisa de alguns ajustes, sobretudo no que diz respeito à avaliação dos internos e alguns estágios.

Também abordámos a problemática da dotação dos serviços de Medicina Interna e a distribuição do trabalho, contemplando, por exemplo, períodos de tempo protegido para a investigação, mas também formas de reduzir a sobrecarga de trabalho.

Assim, estamos a reunir e fornecer algumas ideias gerais para um futuro programa. Pretendemos que todos percebam o que é o internista e o que este faz e deve fazer dentro do hospital, contemplando todas as múltiplas tarefas que não decorrem só dentro do serviço de Medicina Interna, ou dentro da urgência, mas que passam também por apoiar outras unidades de internamento ou de ambulatório.

 

Cláudia Gomes
Jornalista Estagiária

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