“O grande retorno das Jornadas tem sido melhor Medicina, num espírito de multidisciplinaridade”

João Jácome de Castro, presidente das 14.ªs Jornadas Práticas de Diabetologia e Obesidade em MGF na Zona Sul, destaca “a significativa melhoria da prática clínica” nas áreas da diabetes e da obesidade, nos últimos anos. Em entrevista, afirma, ainda, a importância do trabalho multidisciplinar e do combate à inércia terapêutica, sobretudo no que diz respeito ao excesso de peso.

“O grande retorno das Jornadas tem sido melhor Medicina, num espírito de multidisciplinaridade”

Em 14 anos de Jornadas, quais têm sido os principais frutos deste evento?

Antes de mais, têm sido anos de um grande investimento na formação pós-graduada em diabetes e, nos últimos anos, em obesidade, o que se traduz numa significativa melhoria da prática clínica, num espírito de parceria entre Endocrinologia e Medicina Geral e Familiar (MGF).  Simultaneamente, estas jornadas têm contribuído para estreitar laços e a camaradagem entre ambas as especialidades, tornando a nossa relação mais fácil e de maior proximidade.

Tem também sido a oportunidade de descomplicar o progresso científico na área da diabetes sob a ótica da prática clínica. Em suma, o grande retorno destas Jornadas tem sido uma melhor Medicina, num espírito de multidisciplinaridade, que é um dos aspetos fundamentais e que tantas vezes falta no dia a dia da nossa profissão.

A MGF continua a ser a primeira porta de entrada. A maioria dos casos de diabetes e obesidade deve ser seguida pelo médico de família ou deveria existir maior articulação com a Endocrinologia para que haja um trabalho conjunto?

É a grande porta de entrada, mas também de acompanhamento destes doentes. Quanto à sua questão, em vez de ‘ou’ é um ‘e’, isto é, devem seguir a maioria dos casos e estabelecer-se, também, uma articulação entre ambas as especialidades. Na prática, estamos a falar de cerca de 10-14% da população adulta, em Portugal, com diabetes, de cerca de 60% de adultos com excesso de peso ou obesidade. A maioria dos doentes deve ser acompanhada no âmbito da MGF, muitas vezes em articulação com a Endocrinologia. É importante que haja sempre uma porta aberta para que o endocrinologista possa debater os casos, reavaliar periodicamente os mais complexos, etc. Devemos estar de braços dados e não trabalhar de forma isolada.

As ULS estão a facilitar essa articulação?

Qualquer modelo de saúde, que otimize e aproxime o médico de família dos doentes e facilite o contacto entre cuidados primários e hospitalares só pode ser positivo. O importante é que os cuidados de saúde primários (CSP) possam funcionar bem, que os médicos tenham condições e tempo para observar e conversar com os doentes e que sejam adequadamente remunerados.

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E nos hospitais privados? Também existe articulação entre especialidades?

Existe uma enorme heterogeneidade no privado. Não sei se a articulação existe sempre, apesar dos bons médicos que estão neste setor. Pode, de facto, existir por vezes um certo viés, no sentido de serem prescritos demasiados exames e sugeridas demasiadas intervenções cirúrgicas e diagnósticas. Devemos ter muito cuidado para que o viés comercial não se sobreponha aos princípios éticos e aos cuidados clínicos. Deve evitar-se, ainda, que nos hospitais  privados se vejam os doentes a correr. E deve haver tempo para as equipas discutirem e estudarem os casos clínicos. E tempo para ensinar os médicos mais novos. Nunca devemos ceder à tentação ‘mercantilista’, algo muito perigoso e que se tem visto nos últimos tempos.

Tendo em conta que as pessoas tanto são seguidas no público como no privado por causa do aumento dos planos/seguros de saúde, deveria existir ferramentas que permitissem a articulação também entre setores de saúde?

Em Portugal, ainda não temos o fluxo de informação ideal entre os diferentes setores da saúde. Repare que o setor privado não e apenas os hospitais privados… Mas, apesar de tudo, tem havido algumas preocupações em relação a esta questão. É importante que no hospital ou no consultório se possa aceder a mais informação, com o consentimento do doente. Por exemplo, nos consultórios privados ainda não se pode prescrever determinados exames complementares de diagnóstico e terapêutica…

Nos últimos tempos, têm vindo a público notícias de escassez de antidiabéticos que ajudam no controlo da obesidade, muito por causa da sua prescrição para casos em que se quer apenas emagrecer. Que impacto podem ter estes medicamentos, a longo prazo, quando a pessoa não é diabética nem sequer chega a ter obesidade?

Neste momento, vivemos um período muito desafiante e animador, no sentido de que temos acesso a novos fármacos para as pessoas com diabetes e excesso de peso/obesidade. De acordo com o estado da arte, não é apenas a pessoa com obesidade que deve ter acesso a determinados medicamentos, porque se interviermos mais cedo – quando há excesso de peso e ainda poucas complicações – vamos aumentar a probabilidade de influenciar o curso da doença. No caso da diabetes, também devemos tratar os doentes mais cedo, para que não venham a ter complicações ou, pelo menos, para que as mesmas não progrediam tão rapidamente e surjam mais tarde.

Existem, de facto, novos fármacos excelentes para a diabetes e para a obesidade e, relativamente a alguns destes, existe escassez no mercado nacional, mas mais por causa da limitação do número de embalagens lançadas no mercado do que da dificuldade em aumentar a produção. Um outro aspeto da sua pergunta relaciona-se com a prescrição de fármacos comparticipados pelo SNS para a diabetes a pessoas com obesidade. O facto de eu, como endocrinologista, e das sociedades científicas defendermos a comparticipação de fármacos em determinados casos de excesso de peso e obesidade, isso não nos desobriga de cumprir a lei.

O Ministério da Saúde anunciou que se vai rastrear a distribuição e prescrição destes fármacos. Considera que esta pode ser a solução ou, na prática, não vai ter um impacto significativo?

A supervisão é essencial para que se assegure a qualidade e os princípios éticos. É preciso fazer com que as pessoas cumpram a lei, mesmo não concordando com a mesma. Além disso, é preciso renegociar com as companhias farmacêuticas os limites, porque é claro, do ponto de vista científico, que há mais doentes que podem ter benefícios com estes fármacos.

Há grandes novidades nas guidelines da American Diabetes Association (ADA) 2025? Quais?

Não há propriamente grandes novidades, mas reforça-se a preocupação de se tratar mais, melhor e mais cedo os nossos doentes. Desta forma, evitam-se complicações ou contribui-se para que estas surjam mais tarde. Além disso, alerta-se para a importância de se prescrever fármacos de acordo com o perfil da pessoa e também para se optar por associações terapêuticas. Neste evento vamos também falar da insulinoterapia, onde existem terapêuticas cada vez melhores.

Fala-se muito da inércia terapêutica na hipertensão (HTA). Acontece o mesmo na diabetes, sobretudo na pré-diabetes, assim como em casos de excesso de peso?

Sem dúvida, sobretudo no excesso de peso. Mas deve olhar-se para esta questão como um desafio dos médicos. Não devemos ficar parados, mas agir mais para mudar esta realidade. É preciso, de facto, combater e vencer a inércia terapêutica, nomeadamente no excesso de peso.

No evento terão uma sessão sobre vacinação. Pode dizer-se que as vacinas são mais uns dos pontos a ter em conta na prevenção de complicações na diabetes e obesidade?

É fundamental para se evitarem imensos problemas! A cultura da prevenção é muito importante.

Haverá um momento para os enfermeiros e nutricionistas. Que papel têm, hoje, nas áreas da diabetes e obesidade?

O trabalho multidisciplinar é essencial entre as várias especialidades médicas, mas também com outros grupos profissionais, nomeadamente os nutricionistas e enfermeiros, sempre chamados a participar ativamente nestas jornadas.

Com novos fármacos e com várias campanhas de informação, acredita que a diabetes e a obesidade vão ser um problema menor daqui a 20 anos?

Tenho esperança. Mas, para tal acontecer, é preciso apostar-se cada vez mais na prevenção primária, ou seja, modificar estilos de vida para diminuir a obesidade e, por conseguinte, a diabetes. E depois, não descurar a prevenção secundária e terciária, isto é, deve tratar-se melhor as pessoas com obesidade e com diabetes – até já se fala em remissão -, evitando o surgimento de complicações ou, pelo menos, minimizando-as.

 

Maria João Garcia

 

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