Mergulho: Uma prática com contra-indicações cardiovasculares

A Federação Francesa de Estudos e Desportos Submarinos (FFESSM, na sigla francesa) elaborou uma lista de contra-indicações para esta prática desportiva

O trabalho foi conduzido pelo médico Gérald Phan, cardiologista em Levallois-Perret, subúrbio de Paris, e médico federado da FFESSM, e analisa as diferentes situações clínicas em que o mergulho submarino não é recomendado.

Partindo da premissa de que o mergulho submarino impõe sobrecarga cardíaca e que na maioria dos casos, a anamnese, a avaliação cardiológica convencional, e o teste de esforço bastam para detetar e eliminar alguma doença cardíaca que contraindique este exercício, as recomendações publicadas pela FFESSM permitem especificar mais precisamente as contraindicações ou as precauções para o mergulho.

A análise partiu de um conjunto de constatações sobre a prática do mergulho.

Desde logo, salienta-se que A imersão (mesmo no banho) provoca uma redistribuição considerável do volume de sangue circulante em favor do volume sanguíneo central, e o aumento de todos os volumes cardíacos.

Que o frio resultante da imersão induz vasoconstrição periférica – aumentando ainda mais a redistribuição e a sobrecarga cardiovascular.

A pressão desempenha um papel secundário sobre o sistema cardiovascular no mergulho desportivo (menos de 40 metros), mas em contrapartida influencia grandemente a ventilação pela inalação de ar comprimido. A pressão também promove a dissolução de nitrogênio no organismo, o que constitui um problema durante o retorno à superfície. Na verdade, a descompressão durante o retorno à superfície e a liberação de nitrogénio associada estão na origem dos acidentes de descompressão (ou doença de descompressão – DD) potencialmente graves, 80% dos quais ocorrem na primeira hora após a saída da água.

Descompressão normal e patológica

Na descompressão normal o nitrogénio dissolvido nos tecidos retorna ao sangue causando microbolhas, normalmente removidas durante a passagem do sangue pelo pulmão.

Se a descompressão for inadequada – subida demasiado rápida ou estado fisiológico (fadiga, desidratação, etc.) no qual a remoção do nitrogênio é reduzida – as bolhas de nitrogênio serão maiores e/ou mais numerosas.
Assim elas podem:

– Dilacerar os tecidos, especialmente os músculos (aumento da creatinofosfoquinase ou (na sigla inglesa) e os tendões que dão origem à dor após o mergulho: acidentes benignos do tipo I (dor, prurido, edema cutâneo e osteoarticular);

Poderá ainda ocorrer o bloqueio de algum plexo venoso que, se medular, causa lesão neurológica da medula espinhal que é, indiscutivelmente, o mais grave dos acidentes.

Mas há mais riscos associados ao mergulho e descompressão:

Pode, por exemplo, exceder-se a capacidade de filtração do pulmão e chegar ao coração, causando risco de embolia arterial, em geral na origem dos acidentes, principalmente;
– Cocleovestibulares: vertigem rotatória, ataxia e vômitos;
– Cerebrais isquémicos; transitórios ou não, dependendo do tempo transcorrido até o início do tratamento em câmara hiperbárica.

É neste momento que a existência de uma comunicação (shunt) do tipo forame oval patente (FOP) aumentaria o risco de doença de descompressão.

De acordo com diversas fontes, o forame oval patente aumenta atá cinco vezes o risco de doença de

O forame oval patente

O forame oval patente consiste na persistência de uma comunicação entre o lado esquerdo e direito do coração. Antes do nascimento (dentro do útero) o sangue passa diretamente do lado direito para o lado esquerdo do coração sem atravessar os pulmões, já que nesta fase da vida não respiramos ar ambiente. Após o nascimento essa comunicação na maioria das vezes se fecha espontaneamente em algumas horas.

Porém, em até 34% das pessoas, ela pode permanecer aberta na vida adulta podendo assim permitir a passagem de sangue do lado direito para o lado esquerdo do coração diretamente sem passar pelos pulmões.

Na grande maioria das vezes essa persistência não causa problemas clínicos porém pequenos coágulos podem atravessar diretamente para o lado esquerdo do coração e causar fenômenos embólicos com significativa repercussão. O acidente vascular cerebral (AVC) é um deles, sendo que a maioria das pessoas que sofrem um AVC devem ter a presença do forame oval patente investigada.

Ora, foi precisamente o forame oval que suscitou o interesse dos cardiologistas pelo mergulho, ao descobrir-se uma associação entre a existência de uma comunicação direita-esquerda, e a ocorrência de doença de descompressão.

Refira-se que entre um quarto e um terço da população tem o forame oval patente. Pelo que um quarto dos mergulhadores provavelmente mergulham com seu forame oval patente sem necessariamente sofrer acidentes. Os acidentes de descompressão permanecem raros, da ordem de 3,5 casos a cada 10.000 mergulhos. Todavia, sabe-se hoje que a existência de um forame oval patente aumenta este risco em quatro a cinco vezes.

O forame oval patente deve ser alvo de rastreio?

DE acordo com as recomendações da FFESSM não deve ser no mergulho desportivo… Isto porque, explicam os peritos da instituição, o risco absoluto de doença de descompressão é baixo. Além disso, as “tabelas” de descompressão, que calculam o procedimento de subida à superfície adequado dependendo da profundidade atingida e da duração do mergulho, foram validadas em populações não selecionadas, compreendendo, assim, de 25% a 30% dos portadores de forame oval patente.

Outra das questões a que os peritos da FFESSM respondem é a de se um diagnóstico de forame oval patente, por acaso ou especialmente depois de um acidente de descompressão deve contraindicar a prática de mergulho.

A reposta é a de que após o diagnóstico de algum acidente de descompressão compatível com um forame oval patente, deve-se propor ao mergulhador alguns procedimentos visando reduzir outros fatores de risco de acidente, para enquadrá-lo de volta na categoria de risco “padrão”.

Todavia, sublinham os peritos, não há consenso sobre a conduta diante da identificação casual de um forame oval patente. Sem dúvida, afirmam, “devemos aconselhar cautela aos portadores de um forame oval patente com derivação significativa em ar ambiente, e talvez estender a eles as recomendações para aqueles que já sofreram acidentes de descompressão”.

A experiência mostra que os mergulhadores modificam o próprio modo de mergulhar após um acidente, no sentido da segurança, e raramente recidivam.

Edema pulmonar de imersão

Outra das situações avaliadas pelos peritos da FFESSM é a da possibilidade de ocorrer edema agudo de pulmão na ausência de doença cardiovascular durante a imersão entre os nadadores, os mergulhadores em apneia ou os mergulhadores que usam cilindros ar comprimido.

Estes casos de edema pulmonar foram descritos em triatletas, nadadores de combate e mergulhadores. O mecanismo, ainda não completamente conhecido, implica no aumento do volume sanguíneo central decorrente da imersão, na elevação da pressão vascular pulmonar, e em fenômenos mecânicos, devido às peculiaridades da ventilação em imersão.

Este quadro é favorecido por esforço, frio, estresse e hipertensão arterial. Entre os sintomas está a dispneia, que muitas vezes piora durante a subida e persiste após a saída da água. O exame de imagem revela zonas de edema intersticial, ou alveolar, sendo essencial para confirmar o diagnóstico. Alguns casos têm sido associados à miocardiopatia de Takotsubo, mas na maioria dos casos o ecocardiograma não revela disfunção ventricular esquerda.

O tratamento é a oxigenioterapia normobárica e, em casos mais graves, a ventilação por pressão positiva. Diuréticos não são indicados devido ao estado de desidratação do mergulhador após o mergulho, e pelo consequente risco de precipitar um acidente de descompressão.

As recorrências são possíveis, mas não sistemáticas; se o acidente é na maioria das vezes sem gravidade imediata, já foram descritos casos graves, até mesmo fatais. É necessário proceder a uma avaliação cardiológica completa e obter o parecer de um especialista em medicina hiperbárica antes de discutir a retomada do mergulho.

Idoso e/ou portador de doença cardíaca: quais as limitações?

Pode-se solicitar o parecer do cardiologista sobre a possibilidade da prática de mergulho para uma pessoa de mais idade ou com doença cardiovascular.

O idoso saudável e assintomático representa poucos problemas, mas a avaliação da capacidade física dele pela anamnese (prática regular de exercícios), pelo exame físico e, muitas vezes, por um teste de esforço, é desejável.

Nos pacientes com doença cardiovascular, somente as pessoas assintomáticas devem ser avaliadas para o mergulho. Na maioria das vezes será necessário fazer um ecocardiograma e um teste de esforço.

O tratamento com betabloqueadores tem sido há muito considerado como contraindicação ao mergulho. Se bem tolerado no nível respiratório (ausência de obstrução do fluxo de ar) e funcional (capacidade de esforço adequada), o paciente pode mergulhar sem restrição.

A hipertensão arterial pode facilitar a ocorrência de eventos cardíacos, sobretudo o edema agudo de pulmão de imersão. A pressão arterial deve estar bem controlada para permitir o mergulho. A escolha do tratamento é livre, mas os inibidores da enzima conversora de angiotensina (iECA), os antagonistas do recetor da angiotensina II (ARA2) e os bloqueadores do canal de cálcio (BCC) são primeira escolha, devido à ausência de limites ao esforço físico e a ausência de desidratação.

Pacientes assintomáticos com doença coronária e função ventricular preservada, lesões coronária moderadas revascularizadas (exceto no tronco comum e na doença de três vasos), sem sequelas significativas de infarto do miocárdio poderão ser avaliados para a possibilidade de realizar mergulhos. Deve ser observado um intervalo de pelo menos seis meses após o último evento (síndrome coronária aguda ou revascularização).

O ecocardiograma e o teste de esforço limitado pelos sintomas em tratamento são indispensáveis. Qualquer isquemia, arritmia ou disfunção ventricular residual constitui contraindicação. A avaliação, anual, se faz caso a caso, com a opinião do cardiologista e do médico federado, ou do especialista em medicina hiperbárica.

As arritmias cardíacas podem causar incapacidade súbita durante o mergulho, e qualquer arritmia paroxística sintomática ou descompensada permanente contraindica o mergulho. No entanto, as arritmias assintomáticas sem alterações hemodinâmicas significativas, sem doença cardíaca subjacente grave podem, em alguns casos, permitir o mergulho. As arritmias curadas por ablação não impedem o mergulho após transcorrido um período de seis meses a um ano. A fibrilação atrial permanente assintomática tratada com anticoagulantes e preservação da capacidade de realizar exercícios adequados permite o mergulho, assim como os portadores de pacemaker (excluindo os desfibriladores de terapia de ressincronização cardíaca (ou CRT, na sigla inglesa), se não dependerem do estimulador, tiverem boa função ventricular esquerda, e capacidade de exercício satisfatória. No entanto, um estudo mostrou que a maioria dos pacemakers testados sofria distorções, sem apresentar defeitos, abaixo dos 30 metros de profundidade. Recomenda-se o limite de 30 metros nestes casos.

A doença valvar agrava as alterações hemodinâmicas do mergulho e, por conseguinte, deve ser avaliada rigorosamente, caso a caso, em repouso e durante o esforço. As insuficiências valvares moderadas sem disfunção ventricular esquerda ou hipertensão pulmonar, e boa capacidade de exercício, costumam ser compatíveis com o mergulho. A avaliação anual será obrigatória para o acompanhamento da evolução da doença. O caso das estenoses valvares é mais difícil, e a avaliação do gradiente e das pressões pulmonares por ecocardiograma de esforço é recomendada.

Estas e outras recomendações podem ser consultadas na página na internet do Club des Cardiologues du sport

 

Miguel Múrias Mauritti

 

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