Maria de Belém Roseira. “Temos de olhar para o SNS de forma inteligente e positiva, sem preconceitos”

Maria de Belém Roseira foi ministra da Saúde entre 1995 e 1999 e, atualmente, é presidente do Conselho Geral da Fundação para a Saúde – FSNS. Defensora do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a responsável considera que é preciso haver mais planeamento e estratégia e também menos preconceitos quando se trata de articulação de cuidados entre público, privado e social.

“É importante que todos conheçam bem o SNS, de modo a poderem colaborar ativamente no seu bom financiamento, desenvolvimento e modernização”, lê-se no site da FSNS. O que é então o SNS?

O SNS é uma instituição que constitui um pilar central nas nossas vidas e um extraordinário instrumento de coesão social. Lida diretamente com um bem maior – a saúde de cada um – e sobretudo quem conheceu o antes e o depois da sua existência tem a verdadeira noção da sua importância.

Muito sucintamente, até à adoção pelo país do princípio da universalidade dos Direitos Humanos, nos quais o direito à proteção da saúde se integra, havia uma segregação entre pobres, remediados (com acesso à Previdência) e os mais ricos no acesso às prestações de saúde. E para se ser tratado sem pagar era preciso ter um certificado de pobreza da Junta de Freguesia – tinha de se assumir a pobreza como estatuto social, o que não está de acordo com a doutrina dos Direitos Humanos que estabelece que todos somos iguais em direitos e em dignidade.

Hoje em dia, para garantir a proteção social dos cidadãos existem, essencialmente, dois modelos públicos: o bismarckiano e o beveridgiano. O primeiro financia-se com as contribuições que incidem sobre o trabalho, a que acrescem as transferências sociais necessárias do orçamento de Estado para cobrir as chamadas prestações não contributivas – as outorgadas a quem não descontou ou não descontou o suficiente, mas necessita de apoio para manter níveis de dignidade. E o segundo, dirigido apenas à proteção da saúde, assenta no princípio de que se deve pagar enquanto se está saudável – através dos impostos –  para receber o tratamento de que se necessita quando se está doente.

Antes do SNS, Portugal havia adotado um modelo bismarkiano, com as Caixas de Previdência e os Serviços Médico-Sociais. Mas, com o 25 de abril de 1974, optou-se pelo modelo beveridgiano. Estes dois modelos estão implementados na Europa e em ambos se prevê o acesso universal. Em Portugal, a Constituição da República Portuguesa de 1976 consagrou o modelo beveridgiano, mas este apenas foi objeto de uma organização e de construção mais estruturante com a criação da chamada Lei Arnaut de 1979. O sucesso do SNS na rápida e consistente melhoria dos nossos indicadores de saúde faz dele direitos humanos em ação, na medida em que a saúde, além de estar ligada ao direito à vida, permite-nos exercer condignamente todos os outros direitos humanos. Nunca devemos, contudo, esquecer que, na sua formulação constitucional, o direito à proteção da saúde tem como correlativo o dever de a defender e promover, adotando, tanto quanto possível, comportamentos saudáveis. A Saúde é o bem que mais valorizamos. Se formos doentes, com forte probabilidade seremos mais pobres, teremos mais dificuldade em estudar com aproveitamento, trabalhar, ganhar condignamente, cumprir deveres cívicos, fazer escolhas e atingir objetivos de vida.

Graças ao SNS, bem como à melhoria das condições económicas e sociais de que o país beneficiou com a democracia e a integração na UE, ganhámos mais 10 anos de esperança média de vida. Com a enorme queda da mortalidade infantil e materna e o aprofundamento do conhecimento científico e dos instrumentos para o aplicar bem, a esperança média de vida  dos portugueses aumentou uma década. Nos anos 70, a mortalidade infantil rondava os 75/1000 habitantes. Atualmente, a morte de uma criança é uma dor insuportável, porque desenvolvemos um trabalho excecional no controlo desses indicadores que podemos orgulhar-nos de estar a par dos países mais desenvolvidos do mundo. As pessoas passaram a dar outro valor à vida e a ter uma outra relação com a morte. Já não se conformam com mortes evitáveis. No entanto, este sucesso nem sempre é reconhecido.

Foi o SNS a instituição que procedeu à igualização social e a uma coesão social inestimável ao tratar rico e pobre lado a lado, sem qualquer distinção e com o mesmo estado da arte. As vidas de cada um passaram a ter o mesmo valor, a mesma dignidade. É indispensável honrar, preservar e estimar o SNS para que se reforce e para que não se degrade.

A FSNS surge como movimento cívico para sublinhar a importância intangível da missão do SNS e contribuir para o seu melhor desempenho através da análise das questões que em cada momento se apresentam, da propositura de soluções para as dificuldades, da publicação de documentos de política, da promoção de debates de análise prospetiva, etc. Exemplo disso é a iniciativa “Estados Gerais”, no âmbito da qual, ao longo de vários meses e de forma descentralizada, foi desenvolvido um conjunto de conferências temáticas, nas quais se apurou um conjunto de recomendações que, a ser adotado, permitiria avançar com medidas de resposta a problemas graves

 

E quais são esses problemas?

Estão muito relacionados com o aumento da esperança média de vida, o que não acontece apenas em Portugal. Com o envelhecimento da população, que constitui um avanço civilizacional extraordinário, surge a comorbilidade como um fenómeno muito exigente, porque aumenta a necessidade de cuidados de saúde e a alteração dos modelos de prestação. O avanço do conhecimento, por sua vez, imprime uma pressão a nível dos recursos necessários, humanos, financeiros e tecnológicos, o que provoca dificuldades acrescidas. Perante a premência e a complexidade das questões que se levantam e a reiterada incapacidade do Estado para refletir estrategicamente e se transformar, a FSNS tem desenvolvido uma intensa reflexão sobre como resolver estas questões. Podemos ter diferentes papéis na sociedade, quer simultaneamente ou não, mas todos devemos pôr em prática o exercício da cidadania. Não podemos ser meros destinatários acríticos das políticas, mas seus coconstrutores também. A FSNS é uma realização prática de democracia participativa e tenta influenciar as políticas de saúde no bom sentido.

 

Tendo em conta os Estados Gerais, quais sãos os pontos fortes e fracos do SNS?

Os desafios atuais do SNS devem-se, essencialmente, a fenómenos globais. A Saúde é uma área de capital humano intensivo. E como é muito valorizada, os países acabam por concorrer uns com os outros no que diz respeito aos recursos humanos – e os nossos são muito bem preparados, o que aumenta a vontade de os atrair –  e os que existem não são suficientes face às crescentes solicitações. Isso deve-se, por um lado, ao facto de as pessoas terem mais conhecimentos e serem mais exigentes; por outro, a longevidade que se conquistou também leva a que haja uma maior necessidade de cuidados por se ter investido mais no tratamento no que na promoção e na prevenção. Hoje é preciso existir uma boa articulação intersetorial para que os determinantes sociais e económicos sejam alvo de intervenções específicas que permitam prevenir a doença, sempre que possível. E a promoção da saúde, bem como a prevenção da doença, fazem-se, em grande parte, fora do sistema de saúde, como na educação, da luta contra a pobreza, habitação, ambiente, agricultura, etc. que devem intervir de forma articulada para assegurar saúde em e para todas as políticas. Esta é a batalha que temos que travar enquanto sociedade: melhorar os anos de vida com saúde depois dos 65 anos, onde não nos comparamos nada bem em termos internacionais.

“É necessário que os diferentes setores não se vejam como inimigos, mas como entidades em que, cada um no seu plano, tem uma determinada função”

No caso dos recursos humanos, falta planeamento?

Sim, a sua formação não tem sido devidamente planeada; sobretudo não se previu a mais recente tendência da internacionalização. Os jovens de hoje são cidadãos do mundo, estão tão à vontade em Portugal como noutro país. Têm ótimas oportunidades de trabalho, lá fora, pois os vencimentos, os regimes de trabalho e as oportunidades de carreira são mais aliciantes… Temos de admitir que se olhou de forma displicente para fenómenos que estão à vista e que não foram acautelados, quer no planeamento, quer na gestão dos recursos humanos, quer na gestão das expectativas dos jovens relativamente à vida. Só para dar um exemplo muito simples, não posso promover a conciliação de tarefas pessoais e profissionais como objetivo estruturante da política de igualdade de género e depois oferecer aos jovens carreiras ou regimes de trabalho que não sejam compatíveis. Por outro lado, começaram a surgir expressivos investimentos privados na saúde, mas não se planearam as necessidades de formação face ao aumento da procura. Neste momento, estamos todos a competir pelos mesmos recursos. Claro que esta situação gera escassez no público, no social e no privado. Além disso, a prestação de cuidados de saúde no privado não tem por missão um serviço público. Pela sua natureza própria, tem que remunerar o investimento em capital, ao passo que no SNS contam os ganhos em saúde da população que tem que ser universalmente coberta, mesmo nas zonas onde nunca haverá rentabilidade económica. Isto não quer dizer que o privado não possa prestar serviços de saúde ao SNS, de acordo com as necessidades identificadas e sob sua orientação. Quanto ao social, precisamos bastante deste setor, sobretudo nos Cuidados Continuados.

 

Nos últimos Estados Gerais, o Prof. Constantino Sakellarides apresentou 12 princípios para o SNS. Um deles diz respeito à interligação entre setores, mas sem pôr em causa o SNS. Que enquadramento deve ser esse?

É necessário que os diferentes setores não se vejam como inimigos, mas como entidades em que, cada um no seu plano, tem uma determinada função. Mas o Estado tem que ser o garante da equidade, da igualdade de oportunidades, da não seleção adversa e da qualidade. A saúde e a vida são valores fundamentais para um Estado civilizado.

“Existe demasiada ideologia na Saúde, na realização deste direito humano. Já António Arnaut dizia que o SNS não é uma questão ideológica mas de direitos humanos”

Em suma, defende-se a cooperação entre setores como gostaria que estivesse estipulado na última Lei de Bases da Saúde…

Sim, esta nova Lei de Bases da Saúde não fala em cooperação, infelizmente. Esta Lei tem erros, e alguns graves, como o facto de a  interoperabilidade dos sistemas digitais apenas estar prevista no público. A Transformação Digital é indispensável a um SNS moderno, seguro, eficaz e eficiente, até por uma questão de eficiência,  para que se possa aceder no hospital público a um exame que já se fez no privado ou vice-versa. Os dados são do doente, não do Estado. Não faz sentido limitar a interoperabilidade; aliás, a própria Constituição fala em articulação e complementaridade. Na FSNS, no último documento, defendemos a cooperação, porque nos dias de hoje é preciso olhar para estas questões à luz da configuração do século XXI e não do século XIX. Existem alguns ideólogos que ainda vivem no passado e que acham que o mundo não foi “pulando e avançando”, como dizia o António Gedeão.   A configuração económica e social, a nível nacional e internacional, foi profundamente alterada. Se o SNS é estruturante para a Economia, o setor privado, de forma diferente, também desempenha um papel importante. Não há país que floresça se as pessoas forem pobres e doentes. Estamos todos interrelacionados.

Foi ministra da Saúde e continua ligada à Política. Considera que existe demasiada partidarização nestas questões?

Existe demasiada ideologia na Saúde, na realização deste direito humano. Já António Arnaut dizia que o SNS não é uma questão ideológica mas de direitos humanos. Por exemplo, nas listas de espera, é mais correto deixar a pessoa à espera durante meses ou anos ou reencaminhar para o privado e o social, desde que garantida a qualidade? As pessoas, a sua vida e a sua saúde estão primeiro. Têm que obviamente ter acesso aos cuidados de que necessitam em tempo adequado e de acordo com as prioridades e as regras definidas pelo SNS.

 

Deveria existir um compromisso entre os diferentes partidos para que a ideologia não ultrapasse direitos humanos?

A Lei de Bases da Saúde já diz isso, mas acabou por não acontecer na prática, como foi bem visível durante a pandemia. Apesar de se ter dito mais tarde que a colaboração com os privados foi fantástica…só que ela, na altura, foi praticamente impedida….Na pandemia optou-se por deixar os casos de covid no SNS e quem tinha outras doenças … paciência, tinha de esperar. Mas a paciência é impaciência e intolerabilidade quando se trata de doença e de risco de vida.

 

Acaba por ser antiético?

Com certeza! São direitos humanos em causa. É uma questão de imperativo constitucional e de equidade.

“Não podemos tratar com displicência quem nos cuida da saúde. Não podemos dar uma medalha e depois, quando é preciso escutar, estar atento, prevenir, não agirmos”

Essa opção também contribuiu para que tenhamos atualmente uma situação pior no SNS?

Sim, acumulou-se um passivo, em termos de doença, que é difícil colmatar e que é muito dispendioso social e economicamente. A pandemia mostrou como o SNS gere mal os seus recursos humanos. A prestação de cuidados de saúde é muito melindrosa, porque é muito exigente. As pessoas têm de ser reconhecidas. Se analisarmos diferentes setores da governação, verificamos que muitos ficaram melhor após a pandemia, enquanto os médicos e outros profissionais de saúde acabaram por ver a sua situação piorar. Precisamos de olhar para este setor com muita atenção e sensibilidade, porque tem especificidades. Eu própria sou testemunha. Não fui ministra da Saúde por acaso. Trabalhei muitos anos e com bons mestres na concetualização de políticas e no terreno em várias instituições. O meu conhecimento não é apenas teórico. A concetualização é importante mas, só por si, pode não se ajustar às realidades concretas. Não podemos tratar com displicência quem nos cuida da saúde. Não podemos dar uma medalha e depois, quando é preciso escutar, estar atento, prevenir, não agirmos. É preciso assegurar respeito e coerência na convivência mútua e ser gratos às pessoas que têm desempenhos fantásticos. Não somos todos iguais, daí que tenha introduzido enquanto Ministra –  o que constituiu uma pedrada no charco do imobilismo da Administração Pública – as remunerações por desempenho. Mas este princípio não pressupõe, claro, falta de correção nos indicadores para garantir que haja uma avaliação justa. Numa organização nem todos conseguem ser excelentes. É preciso capacitar as lideranças para saber gerir pessoas, de forma que elas avaliem as decisões como justas. As pessoas não se motivam se forem confrontadas com injustiça. Até neste domínio da avaliação do desempenho a Transformação Digital  é indispensável.

 

E não se motivam também porque não lhes dão as condições necessárias?

Sim, o desinvestimento, que começou fundamentalmente com a Troika  e com a austeridade, levou a que o essencial fosse posto em causa. No SNS havia os melhores profissionais, os melhores equipamentos, mesmo com dificuldades e atrasos. Mas, se não existe disponibilidade para investir ou se anunciam que vai haver 100 M€ e, afinal, não tenho autorização para os investir, isto significa que não acompanhei a evolução da tecnologia – que salva vidas – e não fiz manutenção das existentes. A Direção Executiva do SNS decidiu, e muito bem, apostar na aquisição de robôs cirúrgicos. Até há muito pouco tempo, existia apenas um robô no SNS oferecido pela Fundação Aga Khan… mas o privado já os tinha há mais tempo… O futuro vai ser a cirurgia robótica. Como posso preparar bem no Internato, neste caso de Cirurgia, se não tenho os equipamentos necessários? Isto não atrai os jovens. É o mesmo que ir para um escritório e não ter computador… E, mais uma vez, sublinho a importância da Transformação Digital, não apenas para a gestão do SNS ou para a prestação de cuidados, mas também para libertar as pessoas de tarefas repetitivas que retiram tempo à relação médico-doente.

 

Mais uma vez falta estratégia?

Sim, nunca mais houve estratégia. Existem muitos planos, mas não se avalia o acompanhamento das métricas. Não se estabelecem prioridades. É preciso saber de que recursos necessito para dado plano e quais as metas que pretendo atingir de forma calendarizada, até porque nem tudo tem a mesma prioridade. A monotorização contínua é também indispensável para a introdução dos ajustamentos necessários.

 

Este ano começou com mais ULS. O que pensa a FSNS sobre este modelo organizacional, nomeadamente nos centros hospitalares universitários?

A FSNS considera que se deveria ter ido mais devagar. É absolutamente indispensável recuperar a proximidade que era garantida pelos centros de saúde, assim como a integração e continuidade de cuidados. A FSNS considera que deveria haver um documento escrito que descrevesse as opções que estão a ser feitas para que os profissionais pudessem sentir-se envolvidos, até para a adequação a diferentes realidades, porque o país não é todo igual. Não nos podemos esquecer que foi criada uma Direção Executiva e que se extinguiram as administrações regionais de saúde (ARS), mas depois há competências a chocar umas com as outras. A própria Direção esteve mais de um ano sem estatuto, sem pessoas afetas, sem meios para funcionar.

“…. foi um mero exercício contabilístico, pois passou a gastar-se muito mais e, pior do que isso, a fomentar um profundo descontentamento interno, uma vez que os colegas que não eram da casa e não tinham qualquer responsabilidade e ganhavam muito mais pelo mesmo trabalho”

E em relação aos CRI?

Os CRI foram criados no meu mandato, assim como os projetos Alpha, que foram o berço das remunerações associadas ao desempenho, que deram origem às USF modelo B. O objetivo era o de garantir a intersubstituição nas equipas, para que ninguém deixasse de ter acesso a Medicina Familiar. Na altura foi também criado o Instituto da Qualidade para formular a informação que sustentaria os prémios de desempenho. Os cuidados de saúde primários (CSP) tinham este modelo que tinha que ser transposto para os hospitais, naturalmente. Seria para mim impensável ter um modelo disruptivo que dava acesso a remunerações mais elevadas, porque ajustadas à qualidade e ao mérito do trabalho produzido nos CSP, e deixar de fora os hospitais, pois isso introduziria uma clivagem insuportável no tratamento dos recursos humanos. Assim se criou o primeiro CRI com o Prof. Manuel Antunes, em Coimbra, existindo já uma programação dos que se lhe seguiriam. Depois do meu mandato, houve alterações e restou apenas o do Prof. Manuel Antunes. Infelizmente, viu serem-lhe retirados progressivamente os incentivos. Para agravar a situação, nos hospitais começou-se a assegurar as urgências com horas extraordinárias de especialistas e internos e a contratar tarefeiros para colmatar falhas. A ideia era a de se gastar menos na rubrica de recursos humanos, mas foi um mero exercício contabilístico, pois passou a gastar-se muito mais e, pior do que isso, a fomentar um profundo descontentamento interno, uma vez que os colegas que não eram da casa e não tinham qualquer responsabilidade e ganhavam muito mais pelo mesmo trabalho. Esta situação explica grande parte das saídas do SNS. Medidas destas não constituem boa gestão de recursos humanos em lado nenhum do mundo!

 

Poderá também ser essa a razão para muitos jovens nem sequer terem optado por uma especialidade?

Não se pode forçar a aplicação prática de modelos apenas por, na teoria, haver quem diga que são fantásticos. É indispensável avaliar e estar disponível para abandonar o que prova ser errado ou ineficiente. A cultura das pessoas e das organizações tem que ser apreendida também no contexto de qualquer mudança. Considero pessoalmente que hoje em dia, e de acordo com os projetos inovadores já experimentados e avaliados, será adequado expandir a profissionalização das urgências hospitalares, assim como ter urgências nos CSP. Se isso acontecer, não vão aparecer tantas pulseiras verdes e azuis na urgência hospitalar.

Faltou leitura da evolução da realidade, avaliação dos diferentes contextos e soluções adequadas à resolução dos problemas identificados.

Vivemos, atualmente, uma profunda transformação sociológica. A minha geração tinha uma relação com o trabalho diferente. Não se gozavam as férias todas, até se podia não gozar licença de maternidade, e a de paternidade não existia sequer! Era diferente em termos de dedicação e envolvimento, porque o trabalho era visto como uma ação de transformação social muito importante, que dava prazer e sentido de missão. Hoje é muito diferente. Os mais jovens querem ter tempo para a vida pessoal. O trabalho é importante, mas também é visto como uma forma de assegurar qualidade de vida pessoal. Face a estas alterações de contexto, não se pode continuar a olhar para os recursos humanos e sua motivação da mesma maneira.

 

No caso dos centros de saúde, dever-se-ia voltar a ter os SAP (ou outro modelo), para atendimento durante a noite?

Depende. Não posso ter o mesmo modelo para o país inteiro. É necessário haver um ajustamento a cada realidade e uma rede de referência para cuidados mais especializados. Na minha proposta de Lei de Bases da Saúde nunca mencionei níveis de cuidados, porque isso é interpretado como uma hierarquia em termos de importância social. Eu falava em tipos de cuidados,  o que não significa que não tenha que haver uma clara definição das redes de referenciação que são outra coisa.

 

O modelo USF B foi reforçado com este Governo, mas não fica a faltar alguma solução mais concreta para quem vai continuar sem médico de família?

Sim, deve haver linhas de entrada, porque o acesso é universal. Temos que nos organizar e, porque não, envolver as misericórdias. Andou-se muito tempo sem se fazer a leitura da realidade e dessa forma não se tomaram as medidas adequadas. Uns porque não viram, outros porque não quiseram ver, outros por preconceitos ideológicos. É essencial ter capacidade de adaptabilidade. Temos que nos ajustar em permanência. O Estado tem uma rigidez de funcionamento que não lhe permite adaptar-se com facilidade às várias mudanças que ocorrem a uma grande velocidade nos tempos atuais, designadamente as sociológicas.

“Nos últimos três anos houve um financiamento na Saúde como nunca até então. Mas não houve simplificação de processos nem reforço de autonomia”

Com a atual crise do SNS como ficam o Ensino e a Investigação na Saúde?

Se há um laboratório natural é a instituição de saúde, quer esteja integrada ou não num centro hospitalar universitário. Temos investigadores fabulosos, inteligentes e criativos, e é uma pena que as grandes ideias tenham que ser desenvolvidas no estrangeiro. Não podemos perder os nossos talentos e na Saúde há muitos. Temos que os valorizar e dar-lhes um tratamento personalizado. Devemos estreitar cada vez mais as relações entre a Saúde, a Investigação Científica e a Economia. A Saúde pode fazer muito pela Economia do país para além do que já faz.

 

Associado a todos os problemas, não estará o subfinanciamento crónico da Saúde, que vive cada vez mais dependente do Ministério das Finanças?

Nos últimos três anos houve um financiamento na Saúde como nunca até então. Mas não houve simplificação de processos nem reforço de autonomia. A obrigatória intervenção das Finanças no dia a dia da gestão da Saúde cria grandes ineficiências. As Finanças devem ser exigentes, garantindo bom uso dos recursos, mas não consigo entender como um Ministro da Saúde, que deve conhecer a sua área, está dependente da assinatura do outro Ministro para substituir a técnica operacional num bloco operatório que entra de licença de maternidade ou se aposenta, mas que é indispensável na cadeia de prestação de cuidados. É preciso, primeiro, utilizar todos os recursos que se contratualizaram da forma mais eficiente possível, mas perante ocorrências extraordinárias, têm de se adotar as medidas apropriadas. O custo de não o fazer é demasiado elevado.

 

Apesar de tudo, acredita na viabilidade do SNS?

Sem dúvida! Repare-se no que aconteceu com a desestruturação do SNS: necessidades básicas em saúde não satisfeitas que obrigaram as famílias – que já pagam do seu bolso muito mais do que era admissível num país com acesso universal a cuidados – à procura de planos de saúde, alguns muito básicos, para conseguirem ter acesso, pelo menos, a consultas. Isto é um sacrifício insuportável para muitas famílias! A nossa população precisa do SNS e por isso mesmo temos que olhar para o SNS de forma inteligente e positiva, sem preconceitos para, em conjunto, encontrarmos as soluções eficientes, inteligentes e justas. “Todos temos uma tarefa a desempenhar”, título de um excelente Relatório, iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, que Lord Nigel Crisp produziu com um grande envolvimento de diferentes agentes e personalidades do sector. Valerá a pena reler e aprender com o que já foi escrito.

Maria João Garcia

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