In Memoriam das ARS …
Especialista em Medicina Geral e Familiar

In Memoriam das ARS …

Há uns meses, ainda antes da posse do actual Governo, o Presidente da República recebia em 27 de março o decreto-lei do anterior Executivo que propunha a extinção das Administrações Regionais de Saúde (ARS). A sua sensata decisão foi a de o enviar para o actual Governo após a sua posse.

Na verdade, o longo e controverso processo de transferência de competências na área da Saúde para as autarquias e entidades intermunicipais, objecto do estabelecido no Decreto-Lei n.º 23/2019, já previa a transferência de responsabilidades (que não de sistema de financiamento) na construção e conservação das infraestruturas, apoio logístico e dos quadros de assistentes operacionais dos Cuidados de Saúde Primários (CSP). Aliás, como se sabe, diversas câmaras municipais não aderiram ou recusaram este procedimento e como as poderemos compreender…

A municipalização da Saúde consagrou uma visão de definhamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), colocando em causa um acesso uniforme, estruturado e universal aos CSP, agravando os custos financeiros aos municípios e abrindo frechas no carácter nacional de um serviço público com as características do nosso, em paralelo com as interferências político-partidárias do plano autárquico.

Entretanto, o tempo foi correndo e percebemos todos, percebeu o País, que a prestação dos CSP caiu num plano inclinado de real perda de qualidade, perdida entre discursos e políticas de saúde transversais e incoerentes e culminada na decisão mais humilhante, injusta e bacoca que liquidou as USF – Unidades de Saúde Familiar. Foi ignorado o objectivo e o desiderato da Reforma dos CSP – promover o padrão de qualidade assistencial, a acessibilidade, o espírito de equipa multi-profissional e o princípio da inter-substituição. Foram vilipendiados o trabalho e o esforço de quantos mudaram o paradigma dos CSP e fizeram das USF modelo B um objectivo e patamar de melhoria e competitividade em prol dos cidadãos e utentes do SNS!

Transformaram-se por um passe de mágica e de estupidez unidades assistenciais que nunca quiseram ou puderam ser USF em USF modelo B, o mais evoluído, e injustiçado também, as USF modelo A em funcionamento há anos, num movimento de desagregação da saúde verdadeiramente preventiva,  plenamente demagógico! Foi como se tivessem determinado que as escolas básicas passassem a estabelecimentos universitários por decreto!

E vieram as ULS, “paletes delas” como diria o Futre dos futebóis, integrando nas suas administrações vogais autárquicos entre outros primores, concentrando centros hospitalares universitários e acentuando todo um movimento hospitalocêntrico, antes da clara demonstração das vantagens, benefícios ou eficiência do modelo ULS!

A tal ponto que, por exemplo, agora em Setembro, foi criado mais um grupo de trabalho, desta vez para “avaliar o modelo atual de funcionamento das ULSU, identificando os desafios estratégicos e o potencial de desenvolvimento, nomeadamente em contexto de articulação com os centros académicos clínicos”!

De igual modo, o Decreto-Lei n.º 54/2024 de 6 de setembro extinguiu as Administrações Regionais de Saúde. Assume-se por esta extinção que, com “as demais alterações orgânicas em curso”, deverá resultar um modelo organizacional “reforçado e mais eficaz, melhor ajustado à diversidade territorial e capaz de garantir a adequada prestação de cuidados de saúde aos cidadãos.”

Pagaremos caro os erros da precipitação e cegueira ideológica no SNS. Os profissionais e os utentes do SNS farão, a seu tempo – certamente bem tarde demais –, a avaliação das consequências do testamento operacional das ARS repartido pelos seus herdeiros – DGS, Direcção Executiva do SNS, ACSS e outros…

In Memorian das ARS, cá estaremos para o verificar.

*O autor escreve de acordo com o A.A.O.

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