9 Mai, 2022

“Faz sentido, nesta fase, uma subida de preços dos medicamentos”

Em entrevista, o diretor-geral da Jaba Recordati, Nelson Pires, alerta que os custos de fabrico dos fármacos já aumentaram mais de 40% e admite um agravamento das falhas de stock nos próximos meses. Olhando para o futuro, Nelson Pires defende a reindustrialização da Europa.

De que forma a guerra na Ucrânia está a afetar a indústria farmacêutica e, em particular a Jaba Recordati?

Um dos impactos imediatos tem a ver com o custo dos combustíveis que se no ano passado já estava alto, agora está muito alto. A indústria farmacêutica importa a maior parte das matérias-primas e de produto acabado e este aumento do preço dos combustíveis tem impacto a dois níveis: no custo do transporte, que já subiu, e na obtenção de algumas matérias-primas – como o alumínio, que utilizamos para embalar os medicamentos. Os custos de fabrico dos medicamentos já aumentaram mais de 40% e os preços finais continuam a baixar. Ainda em fevereiro assistimos a uma revisão em baixa do preço dos fármacos.

Faz sentido, nesta fase, uma subida de preços dos medicamentos?

Faz. Porque senão o que vai acontecer é que os medicamentos mais baratos, que custam poucos euros, vão sair do mercado porque as margens são diminutas ou mesmo negativas. E aí podem acontecer duas coisas: ou o doente não se trata ou então encontra outra alternativa, mais cara, o que não beneficia nem o doente nem o sistema. O mecanismo de revisão de preços é legal, mas não faz sentido que não seja atual e que permita que exista uma referenciação de preços para baixo (como existe) mas também para cima (que não existe, mesmo que a média dos países de referência seja mais alta). Por outro lado, se falarmos em medicamentos de 40 ou 50 euros, a indústria farmacêutica pode ter capacidade de absorver o impacto, mas sobre estes não nos referimos em relação a aumentos de preços.

A Jaba Recordati teve problemas com as entregas de algum medicamento até este momento?

Tivemos problemas com um anti-ulceroso, com um medicamento para a próstata que esteve em rutura por falta de matéria-prima. Temos um problema com um medicamento para o tratamento da gota, em que não há alternativa terapêutica no mercado e que corre o risco de rutura prolongada e mesmo saída de mercado. Aguardamos uma resposta por parte do Infarmed mas ainda nada. Comercializamos também um injetável que era fabricado em Itália, mas que parou o fabrico e agora apenas é fabricado na Turquia, o que significa custos de importação, transporte, fabrico mais altos. E o preço será o mesmo. Claro que não deixamos de ser uma empresa rentável – a nossa missão é entregar valor, não só aos doentes, mas também aos acionistas. Só mantemos estas quatro moléculas que enunciei porque há outras que dão benefício económico.

A falta de medicamentos que se regista terá tendência a agravar-se nos próximos meses?

Vai agravar-se inevitavelmente. Para ter uma ideia do aumento dos custos, nós enviamos alguns medicamentos para Angola. Um contentor que antes custava três ou quatro mil euros agora custa 18 mil. Também o custo do transporte de matérias-primas para Portugal, vindas da China por exemplo, triplicou – ainda efeito da pandemia. Outras sofrem atrasos de entrega gigantescas devido aos “lockdowns”.

Em suma, que medidas defendem que devem ser implementadas nesta fase de aumento dos custos e perturbações no abastecimento de alguns medicamentos?

Há um mecanismo, ao nível do Infarmed, que permite uma revisão excecional de preços, durante dois anos. Nós temos alguns pedidos pendentes de aumento de preços. O problema é que a resposta (quando existe, porque, na maior parte das vezes, nem sequer há resposta) demora nove a doze meses.

Portanto, temos de rever a norma. Por outro lado, o que acontece é que o preço dos nossos medicamentos é calculado com base em quatro países de referência [Itália, Espanha, França e Eslovénia]. No mercado de ambulatório é a média destes quatro países, no hospital é o preço mais baixo dos quatro. Se o preço médio de um determinado medicamento for superior, não podemos subir o preço. Mas nós sabemos que as economias de escala geram preços mais baratos (como a Espanhola e Italiana). Portugal compra em pequena quantidade e, por isso, nunca conseguiremos fazer o mesmo preço. Tem de haver um entendimento entre o governo e APIFARMA para permitir que haja uma revisão em alta do preço dos medicamentos mais baratos. Ou então vão desaparecer. A riqueza que a indústria farmacêutica produz é cada vez mais pequena.

Que resposta têm tido do novo governo em relação a essas preocupações? E que expectativas têm em relação a este executivo?

Tem havido, da parte deste novo governo, uma abertura ao diálogo. Abriu-se um canal de comunicação com a APIFARMA, o que é um ponto positivo. As expectativas são boas, mas o facto é que nada mudou e a diminuição dos preços dos medicamentos continua a acontecer.

Quais os maiores desafios que identifica na área da saúde em Portugal?

O primeiro é o acesso ao mercado. Temos de encontrar uma regra objetiva, que implica uma avaliação fármaco-económica, e que envolva o doente. Quando surge um medicamento inovador, os doentes alemães têm acesso a esse fármaco em 130 dias e a Portugal só chega 500 dias depois disso, por causa da avaliação pelas autoridades competentes – o processo não é objetivo, as regras de comparação são complicadas, o processo administrativo e regulamentar não funciona. Existem semanas inclusivé em que não conseguimos contactar o Infarmed que tem limitações de contacto. Somos o segundo ou pior país da Europa neste aspeto.

O segundo desafio é a transição digital, da responsabilidade do Ministério da Saúde, mas também das instituições. Vimos que o acompanhamento de uma parte dos doentes de forma remota funciona, mas não podemos descurar os restantes doentes. Temos de perceber como vamos colocar o doente no centro do sistema. Temos uma oportunidade – a transição digital – que é também um risco.

O terceiro é a reindustrialização da Europa. Não podemos estar dependentes de mercados, como o indiano ou o chinês, para algumas matérias-primas e fornecimentos. Estes países têm riscos políticos e económicos grandes.

Neste momento, onde estão concentradas as maiores unidades de produção de medicamentos a nível mundial?

Algumas estão na Europa Central. Muitas deslocalizaram-se para o sudeste asiático, onde o custo da mão de obra é barato. Por exemplo, a China fornece 80% de todos os antibióticos dos EUA. Contudo, penso que agora já todos percebemos que temos de manter na Europa os ativos, o know-how e a capacidade produtiva. O grande desafio para Portugal era a atração da produção de medicamentos com valor acrescentado, como biológicos, produtos oncológicos. A produção leva à investigação e ao investimento. Deveríamos criar uma economia do medicamento.

Como se atraem essas empresas e fábricas para Portugal?

Temos de demonstrar que temos bons recursos humanos, talento e capacidade para apoiar as empresas. Temos também de ter uma justiça célere, com tribunais comerciais que funcionem e que defendam as patentes de forma eficaz. Depois, temos de ter uma política fiscal atrativa para investimento e reinvestimento dos lucros – não deveríamos tributar todos os lucros, mas sim os lucros não aplicados nas empresas.

Nota: Esta entrevista foi realizada a 18 de abril

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