23 Fev, 2023

“Cerca de 3-5% dos adultos têm perturbação da hiperatividade e défice de atenção”

O psiquiatra Joaquim Cerejeira, do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, alerta para o subdiagnóstico da perturbação da hiperatividade e défice de atenção (PHDA) no adulto. E realça que existe consenso na comunidade científica de que a PHDA é uma condição neurobiológica que pode ser "mascarada" por sintomas de depressão, ansiedade e até consumo de substâncias.

Existem dados sobre a prevalência da THDA nos adultos?

A Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA) é uma doença neuropsiquiátrica que começa a manifestar-se na infância e, ao contrário do que se pensava há umas décadas, não desaparece na adolescência. Na maioria dos casos persiste na idade adulta embora os sintomas possam manifestar-se de forma diferente. Estima-se que cerca de 3-5% dos adultos tenham PHDA embora muitos não tenham sido diagnosticados e não estejam a ser devidamente tratados.

 

De que forma a THDA afeta a vida pessoal e profissional dos adultos?

A PHDA prejudica praticamente todos os aspetos da vida de uma pessoa, especialmente se os sintomas não forem tratados. A PHDA afeta o desempenho académico e em ambiente laboral, uma vez que compromete a capacidade de gestão do tempo, a concentração e manifesta-se com proscratinação das tarefas e dificuldade em reter a informação . Os adultos com PHDA têm mais dificuldades em conseguir atingir bons resultados escolares e em manter níveis elevados de desempenho no trabalho. A PHDA prejudica os relacionamentos devido à dificuldade em ouvir o outro, baixa tolerância à frustração, tendência a falar “por cima” do outro e dificuldade em cumprir compromissos assumidos (por “esquecimento”). É também frequente que a PHDA esteja associada a problemas legais (ex.: multas por excesso de velocidade, multas por atrasos no pagamento de impostos) e até criminais. A PHDA gera sentimentos de frustração e baixa autoestima, pois o próprio percebe que não consegue atingir os seus objetivos e as expetativas dos outros.

“… os sintomas podem estar “compensados” por adaptações que o doente foi fazendo ao longo da vida para minimizar o seu impacto (ex.. desistir de um curso cognitivamente mais exigente para um curso mais “prático”)”

O diagnóstico na idade adulta é um desafio?

O diagnóstico de PHDA no adulto deve ser feito por um psiquiatra com experiência nessa área. Os sintomas de PHDA no adulto podem estar “mascarados” por sintomas depressivos, ansiedade ou consumo de substâncias que são uma consequência do impacto dos sintomas no doente. Além disso, os sintomas podem estar “compensados” por adaptações que o doente foi fazendo ao longo da vida para minimizar o seu impacto (ex.. desistir de um curso cognitivamente mais exigente para um curso mais “prático”). Assim, no adulto é comum que a PHDA esteja associada a outros diagnósticos psiquiátricos que podem ser o motivo de vinda ao médico. Para um diagnóstico correto de PHDA é fundamental compreender a história de vida da pessoa e detetar a presença dos sintomas típicos ao longo da vida.

“Muitas vezes um dos progenitores reconhece que os sintomas do filho são idênticos aos seus quando era mais novo e que persistem na idade adulta”

Sendo o médico de família a primeira porta de entrada no sistema, o que poderá levá-lo a suspeitar de TDHA?

 O médico de família tem um papel decisivo na deteção de casos de PHDA no adulto. A maioria das vezes os doentes adultos com PHDA não se queixam diretamente dos sintomas de défice de atenção, hiperatividade ou impulsividade, mas sim das suas consequências. Assim, tipicamente o doente queixa-se de sofrer de “burnout”, “depressão”, “stress” pois não está a conseguir gerir as exigências do dia-a-dia, mesmo quando são relativamente simples. Outro dos elementos que pode levantar a suspeita do diagnóstico é quando um dos filhos foi recentemente diagnosticado com PHDA. Muitas vezes um dos progenitores reconhece que os sintomas do filho são idênticos aos seus quando era mais novo e que persistem na idade adulta. Um aspeto importante no reconhecimento da PHDA no adulto é questionar como o doente era durante a infância, adolescência e início da idade adulta. Frequentemente, os doentes referem que em crianças eram motivo de preocupação dos pais ou professores por serem “cabeça na lua”, por terem “bicho-carpinteiro”, mesmo se as notas na escola eram razoáveis.

 

E o que deve fazer? Medicar ou referenciar para a Psiquiatria?

 Se o doente nunca teve o diagnóstico formal de PHDA, o diagnóstico definitivo deve ser confirmado por um psiquiatra com experiência em PHDA. Depois da confirmação do diagnóstico, os casos de PHDA não complicada podem ter seguimento no médico de família. Quando existem comorbilidades psiquiátricas associadas à PHDA (ex.: depressão, ansiedade ou consumo de substâncias), o seguimento é habitualmente feito pelo psiquiatra.

 

No caso dos adultos diagnosticados na idade pediátrica, notam-se diferenças entre quem foi medicado desde cedo, inclusive ainda antes da adolescência?

Os adultos com PHDA podem ser já seguidos desde a infância, pois os sintomas foram reconhecidos pelos pais e professores e devidamente tratados. Tipicamente, isso ocorre quando os sintomas afetaram o rendimento escolar (devido à inatenção) ou o comportamento (devido à hiperatividade e impulsividade). No entanto, muitos adultos com PHDA nunca tiveram o diagnóstico na idade escolar, pois os sintomas eram mais subtis ou foram sendo compensados durante a infância. Nesses casos, o percurso escolar durante a infância pode ter sido irrepreensível e a PHDA só se torna evidente quando o jovem adulto enfrenta desafios de maior complexidade. Por exemplo, a entrada no Ensino Superior está associada a várias mudanças (mudança de cidade, de colegas, do estilo de ensino, do estilo de vida) que são mais difíceis para quem tem PHDA. Um outro exemplo é o início da atividade profissional ou o nascimento dos filhos que aumentam as exigências de concentração, eficiência e gestão do tempo.

“… a PHDA não é um  diagnóstico criado com o propósito de medicar crianças por pressão dos pais ou dos professores”

Quais os principais desafios futuros nesta área, quer do ponto de vista diagnóstico e terapêutico quer social?

Um dos maiores desafios é combater o subdiagnóstico e o estigma associado à PHDA. Recorrentemente, a PHDA é alvo de notícias de conteúdo pouco rigoroso que põem em causa a validade do diagnóstico e a eficácia dos tratamentos disponíveis. É preciso esclarecer que a PHDA não é excessivamente diagnosticada em Portugal, ao contrário do sugerido por algumas notícias, e que a PHDA não é um  diagnóstico criado com o propósito de medicar crianças por pressão dos pais ou dos professores. Ao contrário, a comunidade científica é totalmente consensual em afirmar que a PHDA é uma condição neurobiológica, com marcada etiologia genética, que envolve disfunção de várias regiões do cérebro e que o contexto ambiental, embora possa agravar os sintomas, nunca é a causa primária de PHDA. Os tratamentos farmacológicos disponíveis atualmente são muito seguros, bem tolerados e atingem níveis de eficácia superiores a 80%.

SO

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