Aumento de casos de cancro justifica alargamento da vacina do HPV aos rapazes

Em entrevista ao Saúde Online, a Dra. Isabel Esteves, infecciologista pediátrica, defende a comparticipação da vacina contra o HPV para os rapazes. Isto porque, explica, tem estado a aumentar "exponencialmente" a incidência dos cancros da orofaringe e da cavidade oral provocados pelo vírus.

Saúde Online (SO) – Qual a importância da vacinação na prevenção nas infeções em idade pediátrica?

Dr.ª Isabel Esteves (IE) – As vacinas são, dos meios profiláticos que temos ao nosso dispor, as mais eficazes e que mais poupam na morbilidade [número de casos de algumas doenças] e mortalidade – tanto na idade pediátrica, como na idade adulta. São, na verdade, um dos verdadeiros e maiores avanços da medicina que mais mortes consegue poupar anualmente. A grande panóplia de vacinas que têm ao seu dispor são utilizadas na prevenção das infeções tanto na pediatria como no adulto.

Atualmente, não há nenhuma outra criação ou “atualização” da medicina que poupe mais vidas e tenha mais ganhos em saúde do que a utilização das vacinas.

SO – E no caso das crianças é ainda mais importante?

IE – Exatamente. Isto porque as crianças são seres que, do ponto de vista imunitário, estão mais predispostas a poderem sofrer de inúmeras doenças infecciosas. Para além disso, têm uma determinada susceptibilidade individual que podem gerar sequelas de infeções que podem originar complicações graves ou até mesmo colocar a sua vida em risco.

No entanto, o enfoque na vacinação na idade pediátrica tem precisamente a ver com a sua enorme fragilidade imunitária e a sua maior exposição aos agentes infecciosos (através do contacto com os seus pares nas escolas; da frequência dos infantários; contacto com irmãos; idas aos parques infantis e frequência de locais muito povoados e onde as infeções são facilmente transmissíveis).

SO – Quais as infeções mais comuns em idade pediátrica?

IE – As infeções mais comuns nas crianças e jovens são as infeções respiratórias banais e as gastroenterites agudas, especialmente nos primeiros 2 ou 3 anos de vida.

SO – Portanto, as mais frequentes são as causadas pelo Rotavírus, mas não só, certo?

IE – Exatamente. No caso das gastroenterites agudas, são infeções que, na sua larga maioria, acontecem nos primeiros anos de vida e são causadas por Rotavírus, mas este não é o único agente infeccioso que provoca esta condição.

Prevê-se que a 40 a 50% das gastroenterites graves são causadas por Rotavírus, mas depois existem muitos outros vírus que ocupam percentagens inferiores nesta causalidade.

No entanto, o Rotavírus é um dos grandes agentes do ponto de vista epidemiológico nos primeiros anos de vida. Portanto, é este vírus que mais afeta as crianças (até aos 3 anos), causando gastroenterite agudas e graves. Obriga a que as crianças tenham de ir ao hospital para observação e, muitas vezes, de internamento hospitalar.

SO – Quais são os sintomas?

IE – O Rotavírus é um agente de gastroenterite em que causa uma gastroenterite aguda, que é, do ponto de vista clínico, em termos de sintomas, igual e indistinguível de todas as outras gastroenterites agudas.

Os sintomas que permitem perceber que a criança está a desenvolver uma gastroenterite são: febre e sintomas gastrointestinais – febre, náuseas, vómitos e diarreia. Depois, com o agravar da condição clínica, surgem sinais das complicações da gastroenterite aguda, às quais se deve estar sempre muito atento, que é a desidratação. Esta é visível quando a criança fica mais prostrada [sem força e energia para brincar ou muito quieta], devido à diminuição dos líquidos no organismo, notando-se a pele e as mucosas secas (a mucosa oral sem saliva, língua seca, olho seco), começa a urinar menos. Depois, pode eventualmente demonstrar desequilíbrios iónicos.

SO – Essas gastroenterites podem deixar sequelas nas crianças?

IE – Sim. As gastroenterites podem variar em gravidade e as complicações mais importantes são as relacionadas com a desidratação e desequilíbrios hidroeletrolíticos. Também podem existir algumas complicações neurológicas, mas dependerá da forma como o episódio agudo é ultrapassado (se a criança recupera bem ou não).

SO – Existe uma maior prevalência destas situações nas crianças vacinadas ou nas que não foram vacinadas?

IE – Esta infeção é extremamente comum. É a gastroenterite mais comum nos primeiros três anos de vida – 80 a 90% das crianças até aos dois ou três anos acabam por contactar com o vírus e desenvolver a gastroenterite por Rotavírus, sendo que aquelas que não estão vacinadas não têm como prevenir essa possibilidade de infeção.

Além da vacinação, outras medidas importantes para um bom controlo da infeção passam por medidas apertadas de higienização, como isolamento das crianças que desenvolvem este tipo de gastroenterite e medidas de higiene no contacto com crianças doentes (lavagem das mãos, dos brinquedos, das superfícies e das estruturas em que outros indivíduos contactam com a criança doente, como as fezes e os vómitos) e na confeção alimentar.

Mesmo assim, é muito difícil só com estas medidas prevenir o contágio, sendo que o ideal é a maioria das crianças esteja protegida pela vacinação.

SO – Qual é a taxa de cobertura vacinal?

IE – A vacina do Rotavírus não está incluída no Plano Nacional de Vacinação (PNV), ou seja, é uma das vacinas que todas os médicos de família e pediatras recomendam, mas que está nas mãos dos pais a possibilidade e o exercício prático de promoverem a vacinação dos seus filhos, em especial desta com uma prescrição médica dos profissionais de saúde.

SO – Enquanto pediatra, qual a sua opinião relativamente à inclusão desta vacina no PNV?

IE – Enquanto pediatra e enquanto infecciologista pediátrica, sigo as mesmas indicações que a Comissão de Vacinas da Sociedade de Infecciologia Pediátrica e a Sociedade Portuguesa de Pediatria dão em relação à vacinação contra o Rotavírus. Essas, publicadas em guidelines nacionais oficiais, aconselha que todas as crianças saudáveis devem ser vacinadas contra o vírus, sendo que quanto mais cedo a criança for vacinada melhor. De um modo geral, as crianças devem ter o seu esquema de vacinação completo até aos seis meses de idade.

SO – Em quantas doses se divide esta vacina?

IE – Existem duas vacinas disponíveis, de duas marcas comerciais diferentes – uma delas num esquema de três doses e outra num esquema de duas doses.

SO – Quais são as idades nas quais devem ser administradas?

IE – Podem começar a vacinar-se a partir das seis semanas de vida e devem estar vacinados até aos seis meses.

SO – E relativamente à infeção por HPV? Quão frequente é esta infeção nas crianças?

IE – A vacina contra o HPV é outro grande enfoque nas consultas de vigilância de saúde e de pediatria. Também esta infeção pode ser evitável através da vacinação. Trata-se de uma vacina que já se encontra no PNV para as meninas que é administrada por volta dos 10, 11 anos de idade – isto porque a maioria das infeções por HPV ocorre nas mulheres e constitui a principal causa do carcinoma do colo do útero.

Aliás, o HPV é um vírus verdadeiramente oncogénico, ou seja, causa cancro, principalmente o do colo do útero. As meninas já têm a sua situação assegurada através da inclusão da vacina no PNV, sendo agora o nosso foco a utilização da mesma nos rapazes. Segundo o PNV, os rapazes não têm direto a esta vacina – só pode ser administrada se os pais adquirirem a vacina de um modo “extra programa nacional de vacinação”, com prescrição médica e de acordo com o aconselhamento do seu médico de família ou do seu pediatra. É muito importante falar nestes casos porque os rapazes não podem ter o carcinoma do colo do útero, mas existe um grande “peso” de doença por HPV, que já foi inclusive demonstrado por investigações nacionais e internacionais: este vírus causa doenças muito importantes também nos homens, como lesões benignas (condilomas genitais, uma espécie de verrugas e úlceras que podem surgir na região genital), mas também lesões pré-cancerosas e cancro no homem e no rapaz (cancro anal e do pénis e também da cavidade oral e do pescoço). Alguns anos depois de contrair o vírus e ter a infeção, todos estes problemas de saúde existem também no panorama da vida masculina, pelo que não são só as meninas que são alvo de doenças graves decorrentes da infeção do HPV.

Convém ainda salientar que os cancros supra mencionados não são passíveis de ser rastreados, ao contrário dos das mulheres. Daí a prevenção (essencialmente com a vacinação) ser tão importante.

SO – Mas as doenças contraídas pelos rapazes em resultado da infeção do HPV são mais raras. O facto de haver poucos casos justifica o alargamento da vacinação aos rapazes?

IE – A investigação epidemiológica tem demonstrado em inúmeros países que os cancros da orofaringe e da cavidade oral, apesar de serem raros, têm aumentado imenso de incidência. E vários países que realizam estudos epidemiológicos de larga escala, nomeadamente países do norte da Europa e nos EUA, têm demonstrado que em alguns países já se está a inverter a tendência. O carcinoma do colo do útero já está controlado, fruto da vacinação e do rastreio precoce do cancro do colo do útero. No entanto, o cancro da faringe e no pescoço nos homens causado pelo mesmo vírus tem estado a aumentar exponencialmente.

Em Portugal, não temos ainda dados epidemiológicos que abrange toda a população, porque esses estudos não foram ainda realizados, mas podemos comparar com o cenário internacional.

No fundo, o HPV é uma causa muito significativa de risco também no homem. Para além disso, existe uma suscetibilidade aumentada para este vírus no homem que não se verifica tanto nas mulheres. Ou seja, as meninas têm esta infeção muito frequentemente no início da vida, nas primeiras décadas, diminuindo esta com a idade, e o homem tem menores probabilidades de ter a infeção nos primeiros anos da sua vida, mas, ao contrário das mulheres, o risco mantém-se ao longo de toda a vida, podendo evoluir para cenários mais graves. De acordo com a última investigação sobre a temática, tal acontece devido à pouca capacidade de os homens produzirem anticorpos contra o HPV.

SO – O facto de não haver dados relativos a Portugal podia fazer com que houvesse mais cautela no que respeita à introdução da vacina para os rapazes no PNV. Aliás, a própria Ministra da Saúde referiu que a falta de dados pode ser um impeditivo para que a proposta avance.

IE – De qualquer forma, o facto de não existirem dados não os deve levar a pensar que as incidências sejam muitos melhores ou mais animadoras do que está a ser documentado nos países que têm estudos epidemiológicos de larga escala e muito bem estruturados.

Obviamente que devemos vigiar e construirmos as nossas próprias casuísticas e estudos de incidência para estarmos a par dos números exatos em Portugal, mas na verdade com aquilo que sabemos há nenhuma razão para pensar que os nossos números são mais favoráveis.

Existem alguns pequenos estudos que mostram o peso do HPV como causa de infeção em homens, em homens com condilomas nos mais diversos tipos de consulta.

SO – Na maior parte das vezes, o vírus é adquirido por via sexual?

IE – Sim, é uma infeção extremamente fácil de adquirir por contacto sexual, quer seja com um homem ou com uma mulher infetada. A taxa de infeção nos homens heterossexuais é muito elevada, atingindo cerca de 60%.

No total das causas de cancro, estima-se que 80% da população mundial teve contacto, pelo menos uma vez na vida, com o HPV, sendo ainda o HPV o segundo carcinogéneo mais importante de todos, de tudo o que se considere como causa de cancro, tendo assim um peso bastante significativo.

TC / EQ

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