12 Abr, 2022

“A especialidade de Urgência permitiria melhorar a qualidade do trabalho médico”

Em entrevista exclusiva, a presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Urgência e Emergência (SPMUE) defende que a especialidade melhoraria todo o circuito de cuidados ao doente agudo, diminuindo os tempos de esperas nas urgências, com médicos diferenciados e com uma carreira própria.

A SPMUE foi criada há quase dois anos. Que balanço pode fazer do trabalho desenvolvido desde aí?

Todos os membros da SPMUE já tinham experiência anterior, em grupos de trabalho e noutras sociedades, neste âmbito. Foi isso que nos levou a reunir e a criar a sociedade, de modo a tentar arranjar soluções para as urgências. Isto porque os médicos que trabalham na urgência não têm uma especialidade. O grande objetivo é a criação da especialidade dos profissionais que se dedicam à urgência.

Quando vai ser concretizado esse objetivo?

A criação de uma especialidade depende da aprovação pela Ordem dos Médicos (OM). Nesse contexto, a SPMUE foi recebida pelo bastonário da OM e tentámos expor as vantagens da criação da especialidade. Através da comunicação social, tentamos também explicar ao público em geral as mais-valias decorrentes da criação da especialidade de Medicina de Urgência.

Qual foi o feedback que a SPMUE recebeu da OM relativamente à criação da especialidade?

Foi criado, há cerca de dois anos, um grupo de trabalho na OM para debater o assunto. Esse grupo fez contactos e já terá terminado os trabalhos. Estamos esperançosos.

Que vantagens teria a criação da especialidade de Medicina de Urgência?

As urgências são serviços que levantam muita controvérsia. São locais com caraterísticas peculiares, que estão abertos 365 dias por ano, 24 horas por dia. Nas urgências há um enorme volume de trabalho: registam-se entre 300 e 500 mil episódios de urgências por mês no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Se num serviço de Cardiologia estão cardiologistas e num serviço de Cirurgia cirurgiões, num serviço de Urgência não existem equipas médicas próprias, porque não há especialidade.

Ao dotarmos as urgências, um serviço tão vasto, de pessoas com formação adequada para aí trabalharem, conseguiríamos minimizar alguns obstáculos que se criam no atendimento e melhoraríamos o atendimento ao utente. Há constrangimentos constantes na criação das escalas de urgência. Em períodos de férias e épocas festivas, não há médicos suficientes para preencher as escalas, porque não há um grupo de profissionais dedicado – as urgências são constituídas por profissionais contratados à hora e que não têm a obrigação de ir trabalhar na Páscoa ou no Natal, porque não fazem parte do serviço.

 

“A criação da especialidade seria uma resposta no sentido da estabilização dos recursos médicos”

Assim sendo, a criação da especialidade seria, na sua opinião, uma forma de melhorar todo o circuito de cuidados ao doente agudo?

Claramente. Profissionais que façam urgência todos os dias adquirem um know-how diferente e fazem uma melhor gestão dos exames complementares de diagnóstico – muitas vezes, por incerteza recorre-se a muitos exames –, permitindo diminuir o tempo de espera. Têm um melhor desempenho e segurança.

E depois, para além da urgência, a formação da especialidade contemplaria algo muito importante: o pré-hospitalar. A especialidade verteria a formação na área do doente crítico (que vai do pré-hospitalar ao intra-hospitalar) e dessa forma permitiria dotar as VMER de pessoal qualificado (um problema recorrente) e assegurar as escalas das VMER. Há VMER com escalas de inoperacionalidade importante, porque os profissionais que estão na VMER fazem serviço extra para além do seu horário de trabalho.

A criação da especialidade de Medicina de Urgência permitiria criar formação, melhorar a qualidade do trabalho médico nas urgências e a segurança para os utentes, ajudaria a preencher as escalas com profissionais diferenciados e, numa altura em que se falam de situações de catástrofe (como incêndios, crise covid-19 ou guerra), todas estas vertentes estariam contempladas na criação da especialidade. Somos um dos únicos quatro países na Europa que continua sem criar a especialidade (à semelhança de Espanha, Chipre e Alemanha). Como a especialidade existe em quase todos os países, quando algum médico português vai trabalhar para outro país, nomeadamente para a Europa, não é considerado.

 

“Quem advoga que a competência em Emergência é suficiente tem um profundo desconhecimento da realidade”

Quais as competências que um médico tem de ter para trabalhar num serviço de urgência em Portugal?

Neste momento, não é obrigatório que os médicos tenham a competência de Emergência, mas têm de ter, segundo um despacho de 2014, uma série de competências técnicas que, neste momento, não estão a ser cumpridas – desde cursos na área do suporte avançado de vida, trauma e outros. Estas formações são obrigatórias por lei, mas, neste momento, há alguma dificuldade em cumprir essas obrigações porque há carência de profissionais nas urgências. A criação da especialidade seria uma resposta no sentido da estabilização dos recursos médicos, da sua diferenciação e capacitação técnica.

Não há dúvida de que se trata de um trabalho duro, que não é devidamente remunerado. Os profissionais ficam cansados ao fim de algum tempo e não têm hipótese de progredir na carreira. Enquanto eu, na minha especialidade-base (Medicina Interna) faço formação, especialidade e vou progredindo na carreira, diferenciando-me, quem faz urgências (médicos sem especialidade) não têm essa oportunidade.

Há médicos que defendem que a competência em Medicina de Emergência é suficiente. Como olha para essa posição?

Quem advoga que a competência em Emergência é suficiente tem um profundo desconhecimento da realidade. Faço parte do Colégio da Competência de Emergência e sei que os requisitos necessários para se reconhecer esta competência são transversais a uma série de especialidade (sobretudo Anestesiologia e Medicina Interna) e são básicos, mínimos. Outra coisa é a urgência, que é muito mais do que isso. Muitas vezes a urgência nem sequer é emergência. Cerca de 50% das pessoas que vão às urgências não são reais urgências.

Portanto, a especialidade suplanta, e muito, a quantidade de horas de formação e é muito mais abrangente, uma vez que entra na área do pré-hospitalar, da catástrofe.

 

“Formar uma equipa dedicada é juntar uns médicos e enviá-los para a urgência. Falta tudo o resto”

No entanto, mesmo que a especialidade fosse criada de imediato, passariam anos até que os primeiros médicos formados estivessem no terreno. Neste momento, e perante o cenário de caos que volta a tomar conta das urgências hospitalares, o que considera que poderia ser feito para melhorar estes serviços?

Entre as soluções que têm sido apontados, nomeadamente pelos mais negacionistas da criação da especialidade, está a criação de equipas dedicadas. Mas, o tempo já nos mostrou que não é possível. É uma ideia que, a longo prazo, não resulta. Formar uma equipa dedicada é juntar uns médicos e enviá-los para a urgência. Falta tudo o resto. Os exemplos que temos tido – desde o Hospital da Feira, até ao São João ou ao Hospital de Braga – foram-se perdendo. Tem de haver, ao invés, uma estratégia, que passa pela formação contínua e motivação dos profissionais.

No imediato, é preciso ir buscar as pessoas que estão a fazer urgência (algumas delas muito boas) e fazermos, durante um certo período, a dupla titulação, isto é, dar-lhes a capacidade de as integrar nesta nova especialidade, complementando a sua formação. Ao mesmo tempo, tem de ser criar um bom ambiente em redor: têm de sentir que são uma equipa, que estão integrados e que estão motivados.

Um aumento dos incentivos remuneratórios, por exemplo, poderia ser uma solução imediata para amenizar o problema do preenchimento de escalas nas urgências?

Já temos vários tipos de incentivos remuneratórios para além do salário-base. A urgência vai ser sempre um fator de muito desgaste e, por isso, os profissionais que aí trabalham merecem uma compensação económica. No entanto, neste momento, há serviços de urgência, que apesar de contemplarem alguma compensação económica, não são apelativos. Os médicos aguentam durante algum tempo e depois cansam-se e vão-se embora. Temos uma constante rotação de médicos nas urgências. As escalas vão-se fazendo, mas os recursos humanos são manifestamente insuficientes. Vemos frequentemente que vários colegas, quando acabam o internato geral, não entram em nenhuma especialidade e vão fazer prestação de serviços para as urgências. São médicos jovens, que vão trabalhar em condições desgastantes.

 

“Temos uma constante rotação de médicos nas urgências”

 

De que forma a SPMUE olha para as empresas de prestação de serviços, que fornecem aos hospitais os chamados médicos tarefeiros?

Achamos que isso não é, de forma alguma, solução. São pessoas sem especialidade, e por isso, com um know-how abaixo de outros colegas com especialidade. Depois, há outros médicos, que são especialistas noutras áreas e que vão para a urgência. E ainda existe outra situação complexa: os hospitais, ao tentarem manter estes médicos nas urgências recorrendo a uma compensação económica, fazem com que os médicos do quadro – que vão desempenhar tarefas semelhantes nas urgências – se vejam confrontados com uma remuneração inferior no mesmo tipo de trabalho. Ficam em desvantagem.

Estima que, a manter-se o status quo, a situação atual, de carência nas urgências, se possa perpetuar durante os próximos anos?

É isso que tememos muito, que se mantenha este caos. Vamos continuar a ter imensas dificuldades. Todas as soluções que foram criadas até agora não resultaram e, neste momento, não há nenhum projeto estruturante para alterar esta realidade, que passa pela contratualização contínua de médicos para a urgência, que saem e são substituídos.

Há hospitais que fazem com os internistas passem um determinado período de tempo apenas a fazer urgências, o que desagrada a muitos colegas, que são obrigadas a exercer uma atividade que não é a sua, por falta de recursos. Estamos habituados a que as urgências sejam suportadas pela Medicina Interna, que é uma especialidade que tem crescido imenso nos últimos anos e que se dedica a doentes crónicos complexos, hospitalização domiciliaria, cuidados paliativos. E depois temos os médicos sem especialidade, que são tratados de uma forma diferente porque não têm especialidade e que não se veem reconhecidos nem com possibilidade de progredir. Continuam sempre a ser trabalhadores à hora, o que é desprestigiante.

 

“Tememos muito que se mantenha durante anos a situação atual de carências nas urgências”

 

Associamos sempre as urgências ao hospital, mas as pessoas esquecem-se dos serviços de urgência básica (SUB), nos centros de saúde – muitos a trabalharem 24 horas. Os especialistas de Medicina Geral e Familiar têm um papel importante, e muitas vezes esquecido, na rede de urgências. Hoje as pessoas têm um problema e querem resolvê-lo na hora. Há também um problema em termos de cultura da população.

SO

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