Entrevista: 80% dos casos de hepatite C poderiam ser tratados nos Centros de Saúde

Em entrevista ao nosso jornal, a Professora Doutora Fátima Serejo do Serviço de Gastrenterologia do Hospital de Santa Maria, responsável pela consulta de terapêutica antivírica, defende que cerca de 80% dos doentes poderiam ser tratados pelos respetivos médicos de família.

Desta forma, assegurava-se  o objetivo de eliminar a infeção enquanto problema de saúde pública, um objetivo proposto pela Organização Mundial, a atingir em 2030.

Saúde Online | O advento dos novos antivirais de ação direta veio alterar profundamente o paradigma de tratamento da hepatite C?

Professora Fátima Serejo (PFS) | Foi um acontecimento científico equiparável a outros como a descoberta da penicilina. Com a descoberta destes novos antivíricos de ação direta (AAD), conseguimos pela primeira vez na história da medicina, curar um vírus associado a uma doença crónica. Os demais vírus controlam-se, mas não se curam, são exemplos o vírus da hepatite B e o HIV.

Foi um avanço extraordinário o que me leva a não entender como é que hoje ainda se questiona a necessidade de tratar esta infeção, promotora de uma doença hepática potencialmente fatal.

Há quem questione o tratamento?

PFS | Portugal foi pioneiro em 2015 na disponibilização universal dos novos AAD. Os decisores políticos e a Indústria Farmacêutica acordaram um plano estratégico para o tratamento de todos os doentes dignosticados e que neste momento já incluiu cerca de 20 mil casos. Foi uma mudança extraordinária, já que até então vingava a ideia de que se deveriam tratar apenas os casos mais graves, como os doentes com cirrose hepática. Ora a verdade é que a cirrose não tem cura. Nessa situação a infeção é eliminada, mas a doença hepática avançada mantem-se. Estes doentes continuam a necessitar de ir às consultas nos hospitais e mantêm o risco das complicações que tinham antes. Felizmente vingou a ideia de que todos deveriam ser tratados, o que foi extraordinário.

Têm surgido queixas de 2015 para cá, de que o acesso já não é tão fácil como era no início… Sente isso na sua consulta?

PFS | Agora, de facto, as coisas deveriam ser mais fáceis do que estão. Hoje temos oportunidade com os novos medicamentos pangenotipos, de facilitar o acesso ao tratamento a todos os infetados. Como referi, Portugal já tratou mais de 20 mil doentes, estamos a fazer bem mas podíamos fazer melhor.

Como assim?

PFS | Podíamos facilitar o acesso ao tratamento se tivéssemos maior disponibilidade dos medicamentos. Os medicamentos precisam de ser autorizados e o tempo de espera continua a ser excessivo. Continuamos a ter de preencher uma série de parâmetros num portal (o portal da Hepatite C), o que nos toma imenso tempo e nos obriga a pedir análises atualmente desnecessárias e que aumenta os custos da investigação inicial prévia ao início da terapêutica. Seria muito útil modificar o Portal da hepatite C de modo a tornar opcional o preenchimento de alguns parâmetros, de acordo com a escolha do medicamento.

Há parâmetros que já não são necessários?

PFS | Há muitos que já não são necessários! A genotipagem pode não ser necessária como também não é necessária a avaliação da fibrose para iniciar o tratamento antivírico. É importante avaliar a fibrose para perceber se o doente curou a infeção e a doença hepática ou se tem uma doença mais evolutiva, que apesar de já não ter o vírus, precisa de continuar a ser seguido. Contudo, a sua avaliação não deve ser um bloqueio ao início do tratamento, uma vez que pode ser efetuada em qualquer altura.

Sobressai também, nas reuniões sobre o tema, uma certa resistência em delegar competências em outros profissionais de saúde, como os médicos de família. Ao contrário do que se faz lá fora onde há países, como a Austrália, onde são os enfermeiros que tratam as infeções por VHC

PFS | Há resistência, que pode ser explicada com a evolução do tratamento da infeção por VHC. De facto, antes de surgirem os novos AAD, o tratamento da hepatite C era tão complexo que só um profissional especializado podia tratar. Era o tempo dos interferões, com muitos efeitos secundários, pouca eficácia. Contudo, a ciência nesta área evoluiu de tal forma, que hoje o especialista deveria apenas intervir para esclarecer dúvidas que possam surgir, delegando nos cuidados primários o tratamento da maioria destas infeções. Sublinhe-se que o hospital e o médico especialista têm de estar sempre presentes para as situações mais complicadas, mas só nessas circunstâncias.

Uma função de consultoria?

PFS | Precisamente. Nós temos cerca de 22 a 25% dos doentes que ainda têm cirrose hepática. Esses têm de ser tratados por nós ou por médicos que saibam como fazer o follow-up periódico para evitar complicações.

Mas para tratar a Hepatite C não é preciso.

PFS | Não é preciso. 80% dos doentes com hepatite C não têm cirrose hepática. E aqui, não tenho dúvidas em afirmar que o tratamento é mais simples do que o tratamento da hipertensão arterial ou da diabetes. Hoje, com um comprimido por dia e com poucos efeitos secundários, conseguimos tratar 97,5% dos doentes.

Em França, por exemplo, o doente vai buscar a medicação ao hospital e já vai com a indicação de que tem de tomar os medicamentos naqueles dias. Vai para casa e toma-os. Entre o diagnóstico e o acesso ao medicamento não passa uma hora de intervalo. Por cá é assim?

PFS | Neste momento, o seguimento de um doente meu em Santa Maria está simplificado. O doente é diagnosticado, eu peço as análises e ele faz a colheita das mesmas no próprio dia. Eu vejo as análises, peço a medicação no portal e só chamo o doente quando a medicação está autorizada.

Posteriormente o doente vai mensalmente à farmácia do hospital levantar o medicamento.

A medicação mensal não é uma limitação?

PFS | Poderá ser, in extremis… Mas é necessária, desde logo porque nos permite aferir a adesão à terapêutica e intervir caso haja algum problema de descontinuidade.

Se ele não for a segunda vez… É porque não houve adesão…

PFS | Exatamente. Se não fosse por isso, o doente levava toda a medicação para casa e passados 3 meses após ter terminado o tratamento vinha fazer o follow-up para perceber se estava ou não curado! Hoje são necessárias apenas 3 consultas médicas para avaliar e tratar. Na 1ª avalia-se a infeção, na 2ª inicia-se o tratamento e na 3ª avalia-se a eficácia do mesmo. Já não é necessário fazer análises durante o tratamento. A avaliação do RNA do vírus é útil no final das 12 semanas de follow para confirmarmos a eliminação e a cura. Com esta estratégia podemos reduzir muito os custos associados ao seguimento e ao tratamento desta infeção.

Outra questão que tem vindo a ser colocada é a de acessibilidade ao médico, com muitos especialistas a advogar que devem ser os médicos a ir ao encontro dos doentes e não o contrário, como hoje acontece…

PFS | Não concordo que sejam os médicos especialistas a ir aos locais tratar os doentes. Acho que o médico especialista deve formar os profissionais de saúde que prestam cuidados de proximidade, na área da residência dos utentes, como os médicos de família, para que estes prestem os cuidados necessários.

Sendo o médico de família um médico que, quando surge um novo medicamento não precisa de formação muito especializada para prescrever, essa formação dada ao médico de família também não é nada do outro mundo, pois não?

PFS | Não é nada do outro mundo! Eu dou muita formação a profissionais de saúde e é muito fácil abordar este tema. Há imensas doenças que o médico de família tem de abordar, muitas delas certamente mais difíceis do que a infeção por VHC. Contudo, para que esta estratégia seja possível é necessário ter facilitado o acesso ao medicamento e haver disponibilidade dos diversos profissionais para o fazer.

Para estes médicos, até pode ser mais vantajoso que sejam eles a tratar os doentes. Atualmente, têm de referenciar para o especialista hospitalar…

PFS | Concordo plenamente. Cerca de 80% dos doentes com hepatite C não precisam de ser tratados por médicos especialistas – França, Austrália e Egito já estão a fazer isto.

Em França, a consulta e o levantamento da medicação demora entre 25 e 30 minutos. Em Portugal, a realidade é bem diferente.

PFS | Ficamos à espera da capacidade hospitalar porque os medicamentos têm ser libertados no hospital. No HSM demora um ou dois meses, mas nalguns hospitais chega a ser muito mais demorado!. Nos EUA, há zonas em que os toxicodependentes e os sem-abrigos estão ligados a centros específicos, onde existem médicos e enfermeiros que os acolhem. Automaticamente são avaliados e tratados – e o medicamento é libertado na farmácia da zona.

Portugal comprometeu-se com a OMS a eliminar a Hepatite C até 2030, enquanto problema de saúde pública. Sendo que das 47 prisões portuguesas, apenas 20 estão cobertas por um programa de tratamento, este objetivo é alcançável? Quando ouvimos que, na península de setúbal, ninguém consegue iniciar tratamento em menos de um ano, que existem hospitais da região Norte que demoram 6 meses a libertar o tratamento e que nas prisões é a boa vontade dos médicos que ainda faz alguma coisa…

PFS | É mesmo a boa vontade dos médicos que ainda faz alguma coisa. Eles ficam zangados comigo quando eu digo que estamos a fazer bem mas estamos longe de ter uma estratégia de eliminação – porque não há uma estratégia nacional. Por isso, se não mudarmos as mentalidades e a vontade, não acredito que consigamos eliminar esta infeção, muito menos em 2030. Temos de ir aos grupos de risco aonde estão os doentes que sabemos que estão infetados. Quais são? Os reclusos e os utilizadores de drogas.

No entanto, mesmo que se atingissem esses dois alvos, não seria suficiente, era preciso fazer mais….

PFS | Neste momento, temos uma prevalência do VHC em Portugal que é entre 0,3% e 0,5%. Na população de risco (toxicodependentes) ultrapassa os 8%. Há estudos que mostram que a maior percentagem de doentes com hepatite C em Portugal infetou-se entre a década de 70 e a década de 90. Foi uma transmissão através de injeções, transfusões de sangue, tatuagens. As pessoas dizem que esse grupo já foi tratado, mas eu tenho dúvidas. Em 2015, na AASLD (reunião americana de Hepatologia) aonde foi apresentado o primeiro trabalho do sofosbuvir, havia uns panfletos à entrada que diziam: “Conheça a sua ALT”. Isto era uma forma de incentivar as pessoas a fazerem as provas hepáticas na consulta com o seu médico de família. Porque uma forma simples de percebermos se um doente tem uma doença hepática é pedir as transaminases.

A professora defende o rastreio universal, pelo menos uma vez na vida, pelo médico de família?

PFS | Porque não? Tem que se fazer uma avaliação de custo-efetividade. Portugal não tem este trabalho feito. Têm que se fazer estudos para perceber se justifica essa estratégia ou se é preferível eliminar primeiro o vírus nos grupos de risco. Fazer esse rastreio seria o ideal. Agora, se é impossível atingir o ideal, temos de começar a fazer alguma coisa, ou seja, fazer o que estamos a fazer neste momento, mas com uma estratégia nacional com foco nos grupos de risco para a infeção. Há muitos países que estão a optar pela estratégia de microeliminação porque é mais rápida e mais fácil de controlar. Agora atuar só nesses grupos provavelmente não chega para termos as metas cumpridas em 2030.

Os custos do tratamento são agora, com a cura, menores do que eram no passado, em que não havia cura…

PFS | Os custos da investigação e os custos que estes doentes trazem ao país por andarem permanentemente em consultas e internamentos são enormes! Se tratarmos corretamente, no futuro vamos ganhar imenso em anos de vida dos doentes e em custos. Não podemos esquecer que estamos a falar de uma infeção e de uma doença que se curam. Se esta doença matasse num mês (como o ébola) toda a gente ia querer tratar, mas como é uma doença silenciosa e de evolução mais ou menos longa, é fácil não ligar. Se fosse uma doença com impacto visível tudo já estaria modificado para facilitar a sua eliminação.

Miguel Múrias Mauritti

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