Falar de saúde é importante.
Afinal a saúde é o nosso bem mais precioso. Dizia-me um paciente recentemente: “se temos saúde, somos ricos”. E é bem verdade…
Tendo saúde, tudo o resto se vai compondo e resolvendo. Sem ela nada conta.
Os avanços nas disciplinas dedicadas à Saúde têm sido surpreendentes, constantes e extremamente velozes. Muitas doenças fatais passaram a ser curáveis ou, pelo menos, controláveis e compatíveis com uma vida com qualidade.
A dor é melhor gerida. E a vida tem sido prolongada.
Por isso falamos de saúde, informamos, alertamos, ensinamos, de modo a que cada vez mais pessoas possam ter acesso a melhores cuidados e saibam quando e onde os devem procurar.
O diagnóstico precoce continua a ser uma forma essencial de se obterem bons resultados, permitindo um tratamento igualmente mais precoce e, por isso, mais eficaz.
Contudo, e apesar desta constante revolução na Medicina, ainda existem diversas condições para as quais não existe uma resposta adequada. Muitas doenças degenerativas, diversos tipos de tumores, doenças de natureza genética, entre outras. Para essas o cenário ainda é muito cinzento, gerando frustração nos profissionais da saúde e sofrimento nos afectados e nos que lhe são próximos.
Recordo-me, há uns anos, das palavras do Prof. António Vaz Carneiro, a propósito do cancro do pulmão, uma doença ainda hoje devastadora. Dizia ele que, para o cancro do pulmão, o rastreio, embora possa parecer prolongar a vida, por passar mais tempo entre o diagnóstico e a morte do doente, na verdade, em muitos casos, apenas prolongou o sofrimento associado ao reconhecimento da doença e aos tratamentos associados porque a morte irá ocorrer aproximadamente ao fim do mesmo período tempo em que ocorreria caso o diagnóstico fosse mais tardio.
Ou seja, o diagnóstico precoce traduz-se, nesses casos, não em mais tempo de vida mas em mais tempo de desconforto e tristeza.
Escrevo tudo isto a propósito de um texto de Heather Sher publicado já este Janeiro no NEJM, com o título “A Graça da Negação”*, graça no sentido de bênção, de dádiva, de adiamento do inevitável.
Nesse artigo, recorrendo a casos de doentes seus e a um muito pessoal, Heather fala sobre o modo como algumas pessoas, face à doença ou ao receio da doença, optam por não ir ao médico, por não fazer exames, por deixar o tempo passar. E, em caso de doença, existe sempre a tendência crítica de lhes perguntar porque não foram ao médico mais cedo, porque deixaram passar tanto tempo, criando uma sensação acrescida de culpa e de ainda maior sofrimento.
Em muitos casos, tal atitude é, de facto, contraproducente uma vez que a eficácia do tratamento varia em sentido inverso ao tempo decorrido desde a instalação da condição clínica. Mas noutros casos, como recordou o Prof. Vaz Carneiro, saber mais cedo que se padece de uma doença em nada contribui para um aumento na esperança de vida nem da sua qualidade, apenas da angústia e do mal-estar.
Por isso, escreve Heather, e eu concordo, temos de compreender essa posição, aceitá-la e nunca a julgar.
As doenças são más mas os tratamentos podem prejudicar a qualidade de vida e podem associar-se a complicações. O mesmo se aplica às intervenções cirúrgicas. Por outro lado, temos os aspectos financeiros e o impacto emocional no próprio e na sua família.
Nada do que aqui escrevo pretende ser uma apologia da negação ou da não realização de rastreios.
Trata-se, somente, de afirmar que a negação é compreensível. É normal ter medo, é normal hesitar quando sentimos que algo tão essencial como a nossa saúde pode estar em risco.
Esse receio pode resultar de uma postura pessoal ou estar associado a experiências próximas, como foi o caso da autora, mas é sempre importante entender e não julgar.
Sobretudo, naqueles casos em que a doença diagnosticada não tem cura, a negação tem o dom de, mesmo sem o ter desejado, conferir uns meses adicionais de paz antes de tudo se tornar mais complicado e doloroso.
E nesses casos, quando se olha para trás, saber que tivemos algum tempo extra na ignorância de algo terrível e incurável, mantendo a nossa vida e dos que nos são queridos poupada dessa dor irreparável só pode ser entendido como uma graça.
A Medicina, como referi, está cada vez mais eficaz na sua missão de salvar vidas e de dar mais e melhor vida. Para o conseguir, é crucial que cada um de nós a ela recorra numa lógica de prevenção ou sempre que se considere necessário.
A Medicina, contudo, não tem resposta para tudo. Provavelmente, nunca terá e, por isso mesmo, ao reconhecer as suas próprias vulnerabilidades, tem o dever de compreender e respeitar aqueles que, por opção, por medo ou por fé, não a procuram e se mantêm obstinadamente de costas voltadas à doença e à sua potencial cura. E, nesses casos, como em todos os outros, devemos permanecer sempre disponíveis para ajudar quando cada um entender ser chegado o momento.
Nem antes. Nem depois…
* Heather Sher, The Grace of Denial. N Engl J Med 380 (2), 2019: 118-119