Diabetes e obesidade. “É fundamental apostar na articulação entre cuidados primários e hospitalares”
Davide Carvalho é o presidente das 14.ºas Jornadas Práticas de Diabetologia e Obesidade em MGF da Zona Norte, que decorrem hoje e amanhã, em Vila Nova de Gaia. Em entrevista ao SaúdeOnline, o responsável realça o aumento de casos de diabetes após a pandemia e alerta para a necessidade de se tratar a obesidade como doença.
A diabetes e a obesidade são já as pandemias das próximas décadas?
Podemos, de facto, considerar que a diabetes e a obesidade são as pandemias gémeas, isto é, uma está associada à outra. Obviamente, que para haver diabetes, para além da insulinorresistência que a obesidade confere, é também indispensável que haja disfunção da célula beta. Tem-se assistido, nos últimos anos, nomeadamente com a pandemia da covid-19, a mais casos destas patologias, porque as pessoas ficaram mais tempo em casa e perderam o hábito de sair de casa e de praticar qualquer tipo de atividade e exercício físico. Recentemente também foram publicados estudos científicos que demonstram que o vírus SARS-CoV-2 tem uma apetência especial pelas células beta-pancreáticas, desencadeando assim a diabetes tipo 1, por destruição destas células. No que diz respeito à diabetes, ainda não existem dados em concreto.
No caso da diabetes tipo 2, o estilo de vida conta muito. Após tantos anos de campanhas de informação, por que razão a população teima em não aceitar mudar comportamentos de risco?
Mudar o estilo de vida não é fácil. Considero que devem ser tomadas medidas que facilitem a prática de exercício físico. Por exemplo, há muitas localidades onde os passeios são estreitos e as pessoas não se sentem motivadas para sair e caminhar. O Planeamento Urbano deverá começar a pensar nestas questões que são fundamentais para promover a adoção de hábitos de vida saudável. Quantas vezes não vemos mães a terem de contornar vários obstáculos para conseguirem passear o bebé no carrinho? Deve-se também apostar na melhoria dos transportes públicos, porque dessa forma a pessoa sempre tem de andar mais, subir e descer escadas. No que diz respeito às alterações do ponto de vista alimentar, é preciso reforçar a mensagem de que, desde pequeno, se deve comer de forma saudável, evitando-se excesso de açúcar e gordura, optando-se mais por legumes e fruta… Em Portugal ainda há muitos a consumirem sopa, rica em nutrientes e água, e pobre em calorias. Não podemos perder a riqueza da sopa. Para tudo isto é preciso envolver a população, desde tenra idade, para que possamos diminuir a taxa de obesidade e diabetes. Apostando neste trabalho nas escolas, mais facilmente se consegue manter certos comportamentos ao longo da vida. Se se vai ao restaurante, em vez das entradas com croquetes, pastéis de bacalhau e outros fritos, deve-se optar pela sopa.
“Nos últimos anos tem-se assistido a uma explosão de novidades, sobretudo, de fármacos que modificam o prognóstico da diabetes”
Os fármacos têm evoluído muito. Quais as vantagens que mais destaca nesta área da Farmacologia?
Nos últimos anos tem-se assistido a uma explosão de novidades, sobretudo, de fármacos que modificam o prognóstico da diabetes. Por exemplo, os inibidores da GLP-1 permitem melhorar o controlo da diabetes – essencial para a prevenção de comorbilidades -, mas a sua mais-valia é também prevenir o aparecimento de complicações macrovasculares (enfarte agudo do miocárdio, alterações cardíacas, acidente vascular cerebral). No caso da obesidade, infelizmente, não dispomos no nosso país de alguns fármacos, nomeadamente o semaglutido para uso apenas da obesidade. Mas temos alguns agonistas do recetor GLP-1 e também temos a associação bupropiona/naltrexona, que são uma excelente terapêutica, com muito bons resultados. Atualmente, esta inovação também é importante no que diz respeito à adesão terapêutica, devido à sua eficácia em diminuir o apetite – em particular, o liraglutido, um agonista do recetor GLP-1, que atrasa o esvaziamento gástrico e reduz o número de alimentos que a pessoa vai ingerir ao longo do dia. A perda de peso, não só motiva o doente a cumprir o tratamento como lhe foi prescrito, como terá mais vontade de praticar exercício físico. A obesidade provoca maior sobrecarga nas articulações, provocando dor, o que obviamente é desmotivante.
Mas o facto de ser utilizado por quem só quer perder peso por questões de beleza, não poderá ter consequências junto dos decisores para aprovarem mais terapêuticas para a obesidade?
Nos últimos tempos temos ouvido falar, de facto, na falta do semaglutido nas farmácias. Na Europa existem duas formulações deste medicamento, uma para tratar a diabetes, que se chama Ozempic, e uma outra para tratar a obesidade, denominado Wegovy. Mas, em Portugal, não temos acesso a este último, daí que, na sua ausência, se prescreva o Ozempic. É esta situação que tem contribuído para alguns problemas de abastecimento. Seria bom ter acesso, no nosso país, ao Wegovy. Os doentes com obesidade têm direito em ter acesso a este tratamento com bons resultados nos doentes com diabetes. O Serviço de Endocrinologia do CHUSJ tem colaborado em alguns ensaios clínicos e é notável a sua mais-valia, quer na doença em si como na prevenção de comorbilidades. Esta questão da comparticipação não é exclusiva de Portugal. Excetuando a França, com o rimonabant. As entidades de saúde portuguesa sentem-se assim numa posição confortável face às suas congéneres. Mas é pena, porque as vantagens destes tratamentos são por demais evidentes, destacando-se também a prevenção de comorbilidades.
“A obesidade é uma doença que, só per si, tem consequências gravíssimas, independentemente de vir a ser causa de diabetes, hipertensão ou dislipidemia”
Apesar de ser uma doença, a obesidade ainda não é tida como tal…
Exatamente! Essa é a questão: a obesidade não é apenas um fator de risco para outras patologias, como a diabetes. A obesidade é uma doença que, só per si, tem consequências gravíssimas, independentemente de vir a ser causa de diabetes, hipertensão ou dislipidemia. É preciso olhar para a obesidade como uma doença e tratá-la como tal. Isso implica, obviamente, fármacos. Estes existem, mas falta a sua comparticipação.
Este é um evento a pensar na Medicina Geral e Familiar (MGF). Como avalia, atualmente, a interligação entre a Endocrinologia e a MGF?
Temos tido boas experiências, particularmente com os AceS da região da influência do CHUSJ (ACeS Maia-Valongo e AceS Trofa) e com os quais nos articulamos através das unidades coordenadoras funcionais da diabetes (UCFD). É fundamental apostar na articulação entre cuidados primários e hospitalares, o que permite a criação de condições para que, mesmo os que necessitem de acompanhamento hospitalar, possa, se possível, voltar aos cuidados de saúde primários sem prejuízo do seu tratamento. As Jornadas também são um ponto de encontro entre as duas especialidades [Endocrinologia e MGF], e em pé de igualdade, assim como entre os mais diferentes grupos profissionais de saúde (enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, fisiologistas do exercício…). Com equipa inter e multidisciplinar é possível dar o salto qualitativo tão desejado para prestar os melhores cuidados de saúde.
A solução passa inevitavelmente pelo modelo UCFD?
As UCFD deviam ser generalizadas a todo o país, porque apenas com diálogo é possível conhecer, em concreto, as necessidades de cada especialidade e o que cada uma tem a oferecer.
Nestas Jornadas vão homenagear a Prof.ª Doutora Luciana Couto. Como define a Professora?
A Prof.ª Luciana Couto é uma amiga de longa data que está agora a terminar a sua carreira. Desde as primeiras jornadas que a Professora Luciana Couto faz questão de nos acompanhar. É mais do que justo que esta homenagem seja feita. A professora sempre teve um enorme interesse pela formação contínua na MGF, sem esquecer a investigação.
Texto: Maria João Garcia
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