Cuidados Paliativos. “A maioria das equipas não tem o número mínimo de profissionais”
No âmbito da conferência "Multidisciplinaridade em Cuidados Paliativos", que decorreu ontem, em Lisboa, Joana da Graça, uma das organizadoras do evento e médica especialista em Oncologia Médica no Centro Clínico de Lisboa do SAMS, fala sobre a realidade atual dos Cuidados Paliativos em Portugal e do que deve ser melhorado.
Qual a realidade dos Cuidados Paliativos?
Nos últimos anos tem existido um investimento no desenvolvimento dos Cuidados Paliativos (CP) em Portugal, com o aumento do número de equipas especializadas, de forma a atingir as metas estipuladas pela Comissão Nacional de Cuidados Paliativos nos sucessivos Planos Estratégicos para o Desenvolvimento dos CP. Apesar destes esforços permitirem uma distribuição geográfica mais alargada de cuidados especializados no país, a verdade é que a cobertura populacional está longe de ser a ideal.
Tendo em conta os dados mais recentes, estima-se que o número de pessoas com necessidade de CP esteja próximo das 100 mil em idade adulta e cerca de 8 mil em idade pediátrica. Infelizmente, apenas cerca de 25% dos adultos e 0,01% das crianças tiveram acesso a CP especializados. Um dos esforços no futuro deverá passar por aumentar a capacidade de resposta especializada e permitir um acesso mais rápido e generalizado a este tipo de cuidados.
O objetivo para os próximos anos é a integração de uma abordagem paliativa nos vários contextos do SNS, investindo na formação dos profissionais de saúde nesta área, tanto em competências básicas de forma mais generalizada, como em formação especializada.
“Assim, será possível uma prestação de cuidados de qualidade, com uma abordagem paliativa básica abrangente e com a possibilidade de intervenção de equipas especializadas.”
O que contribui para essa situação?
Há vários fatores que contribuem para esta situação, um deles é a falta de recursos humanos. Apesar de atualmente existir uma cobertura geográfica praticamente total a nível nacional em termos de equipas especializadas (com pelo menos um recurso por distrito), na realidade a maioria destas equipas não tem o número mínimo de profissionais para as necessidades assistenciais, e muito menos para a prestação de cuidados de qualidade.
Outro dos fatores é o défice de formação em CP. Existem necessidades formativas por colmatar dentro das equipas já existentes e existe um grande défice de formação básica em CP para os profissionais de saúde que contactam com este tipo de doentes nas diversas áreas da saúde. Esta lacuna formativa generalizada, para a aquisição de conhecimentos e competências básicas na área da medicina paliativa, leva a uma maior dificuldade no reconhecimento do doente paliativo e a sua referenciação atempada a uma equipa especializada, não permitindo a otimização de cuidados.
Há ainda a falta de estruturas especializadas e de recursos financeiros para que estas equipas possam trabalhar sem constrangimentos. Existe também uma grande iliteracia para a saúde na população geral, ainda mais para a doença e para a morte.
“A maior parte da população desconhece o que são cuidados paliativos ou tem preconceitos que dificultam a compreensão da sua necessidade e importância.”
No evento vai ser discutido um projeto de referenciação. Em que consiste?
O nosso principal objetivo para a organização desta reunião é permitir a reflexão e discussão entre pares, de diversas áreas de formação e de diferentes contextos, em relação ao estado atual dos CP em Portugal, aos problemas e dificuldades e, se possível, tentar encontrar estratégias para colmatar falhas e ultrapassar obstáculos.
Enquanto equipa tentámos perceber de que forma poderíamos contribuir para este objetivo e elaborámos uma proposta para avaliação e referenciação do doente paliativo, que poderá e deverá ser aplicada por um médico assistente do doente, tanto em contexto ambulatório, como hospitalar.
Após a identificação de um doente que cumpre critérios para abordagem paliativa pelo seu médico assistente, propomos a avaliação do seu grau de complexidade com ferramentas já disponíveis e validadas em Portugal, e posteriormente orientar o doente de acordo com a necessidade ou não de acompanhamento especializado.
Propomos também a criação de uma linha telefónica de apoio, destinada a doentes, cuidadores e profissionais de saúde, cujo objetivo será a orientação de situações urgentes. O serviço seria prestado por profissionais com formação específica em CP, com resposta em permanência de médico e enfermeiro e apoio de psicólogo, assistente social e conselheiro espiritual.
Na área dos Cuidados Paliativos, além de ser necessário haver mais camas, o que deve melhorar em termos de formação e organização do trabalho dos profissionais de saúde que se dedicam a esta área?
Relativamente à formação, deveria existir investimento em todos os contextos, desde a educação da população em geral até à formação pós-graduada.
É fundamental a educação e sensibilização da população para a temática da doença e das necessidades em fim de vida, com o objetivo de aumentar a consciência sobre a importância da prestação deste tipo de cuidados e do impacto que têm nos doentes na fase final da vida. Estas ações educativas deveriam ser incluídas nas escolas, a partir do ensino básico, introduzindo estes conceitos desde cedo, permitindo a criação de uma geração mais consciente e com ferramentas para lidar com situações crónicas e complexas.
A formação pré-graduada ainda é insuficiente. Apesar da inclusão da temática no programa curricular dos cursos de medicina, esta é opcional, com pouca carga horária e sem componente prática. A mudança deveria passar por incluir a medicina paliativa no currículo de forma obrigatória, de forma a capacitar os próximos médicos dos conhecimentos e competências necessárias para uma abordagem paliativa básica.
Seria igualmente importante a inclusão obrigatória de estágios de Medicina Paliativa no programa de formação das especialidades médicas que abordam situações clínicas que frequentemente são limitadoras da vida, como é o caso da Oncologia médica, Cardiologia, Pneumologia, Medicina Interna, Neurologia, Nefrologia.
Em relação à formação pós-graduada, existem vários cursos disponíveis, de nível básico, intermédio e avançado, que permitem a formação mais ou menos especializada na área paliativa.
Penso que o passo seguinte (e necessário) será a criação da especialidade em Medicina Paliativa, reconhecendo e valorizando o trabalho dos profissionais que desejam investir nesta área. Esta mudança tornará esta área de especialização mais atrativa, uma vez que vai permitir a melhoria das condições de trabalho e de carreira dos profissionais.
CG
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