Acesso à saúde piorou, mesmo depois da troika

Nos últimos seis anos, as desigualdades em saúde, designadamente as dificuldades de acesso a cuidados em função do rendimento, literacia e local de residência agravaram-se em Portugal, mesmo depois do fim do programa de assistência financeira internacional

No “Relatório de Primavera 2017”, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), regista-se que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) português “é relativamente eficiente, ou seja, consegue fazer tão bem ou melhor com menos dinheiro”, conclusão suportada pelo facto de indicadores de saúde nacionais serem melhores que a média da UE15.

No entanto, alertam os especialistas, a percentagem do financiamento público é mais baixa do que a média europeia, o que leva à existência de um défice crónico e a um consequente endividamento público, mas também um peso significativo da despesa privada, em particular dos pagamentos diretos. “Os Portugueses são os europeus que mais gastam do seu bolso para se manterem saudáveis”, salienta-se no documento, o que traduz um fator de menor capacidade de acesso à saúde. Uma situação justificada com a manutenção da diminuição do financiamento público da saúde e o aumento das despesas out of pocket (pagamentos diretos) por parte da população.

Esta realidade tem um impacto negativo na eficiência porque, no caso dos gastos privados, leva ao adiamento do consumo por parte dos indivíduos dos escalões de mais baixos rendimentos e, consequentemente, a uma maior utilização quando decidem recorrer aos serviços. O peso elevado dos pagamentos diretos é, ainda, o principal fator de agravamento das desigualdade, uma vez que a doença e, em particular, a incapacidade para o trabalho afetam sobretudo os grupos mais desfavorecidos da população.

Ou seja, existe um efeito interativo negativo entre o aumento da despesa privada e o nível de saúde, lê-se no documento.

 

A importância da literacia em saúde

Relativamente à “crise”, o seu impacto na saúde ainda se faz sentir, acentua o relatório, pelo que se impõe a sua monitorização e a adoção de estratégias que o permitam minimizar, adotando políticas mais eficazes que protejam as populações mais vulneráveis e que sirvam de modelo para o futuro.

Em Portugal, as desigualdades socioeconómicas em saúde, quando comparadas com outros países europeus, são significativas e estão diretamente associadas aos níveis de literacia. E têm vindo a aumentar, de acordo com os estudos que o OPSS tem publicado sobre o assunto desde 2000. Comparando dados de 2004/2005 com os obtidos em 2014, em amostras representativas da população, o OPSS conclui que seja qual for a doença avaliada, as desigualdades que desfavorecem as pessoas com menor nível de educação aumentou claramente entre 2005 e 2014, independentemente do sexo.

Entre outros exemplos, o risco de diabetes é mais de quatro vezes superior no grupo sem formação e o risco de hipertensão e DPOC três vezes superior. Nos idosos, as desigualdades em saúde são ainda mais relevantes: o risco de má saúde é cinco vezes superior nas pessoas sem educação e mais de duas vezes superior nas pessoas com o ensino básico; o risco de doença crónica é quatro vezes superior nas pessoas sem educação e o risco de limitações mais de três vezes superior.

Estes valores contrastam com da média europeia

Para ultrapassar o problema, os investigadores propõem que “as desigualdades sociais em saúde sejam objeto de uma avaliação sistemática e regular, em linha com a monitorização sistemática e regular das doenças”, e que seja reconhecido que estas representam uma injustiça social e um peso económico elevado para o SNS e para a sociedade, devendo ser combatidas através de políticas de saúde pública, políticas sociais, de educação, de emprego, de planeamento urbano, e não encaradas apenas como uma mera questão de acesso aos cuidados de saúde.

 

 

No seguimento da apresentação do Relatório da Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, o SaúdeOnline questionou o bastonário da Ordem dos Médicos sobre algumas das suas conclusões. Miguel Guimarães diz que o mais importante seria fazer um levantamento exaustivo das necessidades do setor e que todas as áreas carecem de reforços.

Concorda com os orçamentos plurianuais e com a profissionalização da gestão dos hospitais?

Os orçamentos plurianuais só serão necessários em face da suborçamentação crónica do SNS. De facto, o mais importante seria fazer um levantamento sério das necessidades em capital humano, equipamentos, dispositivos, materiais e estruturais, e um planeamento e organização adequados para estabelecer orçamentos para a saúde que permitam recuperar as características genéticas do nosso SNS.

Concordo com a profissionalização da gestão dos hospitais, desde que enquadrada com a governação clínica adequada tendo como peça central diretores clínicos escolhidos interpares ou por concurso. É essencial criar um equilíbrio em que os interesses dos doentes possam ser realmente assegurados.

 

O modelo de financiamento dos hospitais deve ser alterado para dar maior relevância a indicadores de qualidade?

Estou plenamente de acordo que a saúde seja centrada nos doentes e não nas finanças. E um bom ponto de partida é a alteração do modelo de financiamento no sentido de valorizar mais a qualidade em detrimento dos números.

 

O que pode ser feito para combater o crescimento do uso de antibióticos em Portugal?

Mais formação específica nesta área crucial. Mais tempo para a relação médico-doente. Mais investigação que permita diminuir a resistência aos antibióticos. E mais literacia em saúde, que permita aos doentes entenderem melhor as diferentes situações clínicas.

 

Quais são as áreas que necessitam de maior reforço para garantir um melhor acesso dos cidadãos à saúde?

Todas as áreas. Diria que é fundamental promover as reformas necessárias a vários níveis. Continuar a reforma dos cuidados de saúde primários e dotar os mesmos do capital humano que permita uma resposta adequada a todos os portugueses, nomeadamente nas áreas de promoção da saúde e prevenção da doença. Iniciar a reforma hospitalar e da saúde pública no sentido de constituirmos unidades de saúde mais funcionais e melhor preparadas para responder às necessidades globais dos portugueses. O serviço de urgência é um excelente exemplo de uma área que necessita de uma reforma integrada entre os CSP, os hospitais e os cuidados continuados, para além de uma intervenção específica a nível de processos e procedimentos que permitam a existência de serviços de urgência com mais qualidade e mais funcionais.

 

MMM

 

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