16 Jan, 2025

“A proximidade entre Cardiologia e MGF é fundamental para uma profícua prática clínica”

Manuel Carrageta fala sobre alguns dos avanços terapêuticos a que se tem assistido nos últimos 39 anos, desde que se começou a realizar este evento que começou por juntar a Cardiologia e a MGF. Contudo, como realça, mesmo os maiores avanços científicos não devem secundarizar a adoção de hábitos de vida saudável.

Que balanço faz de 39 anos de jornadas que voltam a juntar a Cardiologia e a MGF?

Comemoram-se, este ano, 39 anos de Jornadas e para quem teve o privilégio de as acompanhar ao longo deste longo período são percetíveis mudanças profundas, que é oportuno salientar. Por um lado, uma notória melhor preparação e qualidade dos médicos no terreno, nomeadamente dos médicos de família. Por outro lado, também uma prática médica mais eficaz, graças, nomeadamente, à disponibilidade de fármacos e equipamentos de diagnóstico e tratamento inovadores. Tudo isto obriga a um maior esforço de atualização.

Recordo que a iniciativa destas Jornadas partiu de um grupo de jovens cardiologistas e  médicos de família que resolveram juntar-se para otimizarem a sua prática clínica. Entendeu-se criar um encontro onde se pudessem atualizar os conhecimentos em Cardiologia, Hipertensão e Diabetes, além de se criarem laços de amizade, resultantes do convívio e colaboração mútua. Inicialmente, era uma iniciativa apenas local, mas face ao sucesso começámos a contar com a presença de colegas de diferentes partes do país. Os bons resultados também levaram à sua replicação noutras locais e noutras especialidades, o que demonstra que se trata de uma boa ideia.

 

Que frutos se têm conseguido com a aproximação entre especialidades que tratam doentes com problemas do foro cardíaco e com diabetes e hipertensão?

A proximidade entre a Cardiologia e a Medicina Geral e Familiar (MGF) é fundamental para uma profícua prática clínica, tanto mais porque, hoje em dia são os médicos de família que controlam a maioria dos casos de hipertensão e diabetes, tendo toda a competência para o fazer. São patologias frequentes que são melhor tratadas na proximidade, ficando somente uma pequena percentagem de casos mais complexos para os cuidados dos especialistas hospitalares. Os especialistas de MGF dominam perfeitamente os problemas de hipertensão, colesterol e diabetes, tendo ainda um papel essencial na prestação de cuidados de caráter holístico, por estarem mais próximos da população e por terem uma visão mais global da saúde.

“A obesidade – especialmente a gordura visceral – é um fator de inflamação subclínica com produção de mediadores inflamatórios que  ativam o sistema renina-angiotensina”

As jornadas começam com minicursos. Um diz respeito à obesidade. Considera que ainda existe algum estigma em relação a estes doentes, inclusive entre profissionais de saúde?

O peso corporal é um sinal tão vital como a tensão arterial e a frequência respiratória e a investigação mostra que manter um peso ideal não é uma questão de força de vontade. O peso de uma pessoa é sobretudo o resultado da interação da sua genética com os diversos fatores ambientais e sociais. Por isso não há qualquer razão para estigmatizar estas pessoas.

A obesidade é um importante fator de risco cardiovascular devido a aumentar vários fatores de risco, incluindo a diabetes, a hipertensão, a dislipidemia e outros como a apneia do sono. É claro que  a obesidade não está associada apenas a doença cardíaca, pois também aumenta o risco de vários cancros.

A obesidade – especialmente a gordura visceral – é um fator de inflamação subclínica com produção de mediadores inflamatórios que  ativam o sistema renina-angiotensina, o que contribui para os fatores de risco cardiovasculares. Saliento que o fígado gordo, que faz parte da obesidade visceral, aumenta a produção de fatores da coagulação que promovem a trombose venosa profunda e o embolismo pulmonar.

Estamos perante uma patologia muito complexa, que conduz à doença cardiovascular através de vários mecanismos intrinsecamente interligados. Devido à sua gravidade, existe necessidade imperativa de controlar a obesidade com recurso a alterações do estilo de vida e de medicamentos inovadores muito eficazes e recorrer a intervenções cirúrgicas, felizmente cada vez em menor número , para reduzir significativamente os eventos cardiovasculares. É essencial reconhecer que a abordagem da obesidade é uma componente crucial da gestão do risco cardiovascular e é fundamental para reduzir o peso global da doença cardiovascular.

“Lembro que não existe uma terapêutica que seja melhor que a adoção de estilos de vida saudáveis”

O que ainda falta fazer para que a obesidade deixe de ser um flagelo?

Para isso é necessário fazer alterações significativas na forma como as sociedades modernas estão organizadas, nomeadamente, adotar medidas urbanísticas que tornem as cidades mais saudáveis,  com mais espaços verdes, e condições que incentivem a atividade física, o que depende em grande medida da iniciativa de políticos e autarcas esclarecidos.

A urbanização crescente da nossa sociedade, com um estilo de vida que leva ao sedentarismo e a uma alimentação demasiado rica em calorias, gordura animal e sal tem conduzido a verdadeiras epidemias de obesidade, de hipertensão arterial, colesterol elevado e diabetes.

É essencial adotar um estilo de vida saudável (alimentação mediterrânica, atividade física regular e não fumar) e, em caso de necessidade, assegurar o controlo dos fatores de risco cardiovasculares, nomeadamente a hipertensão arterial, o colesterol e a diabetes, se necessário com ajuda médica.

Lembro que não existe uma terapêutica que seja melhor que a adoção de estilos de vida saudáveis. O que é determinante na esperança média de vida é ter-se uma vida saudável, com exercício e atividade física, alimentação saudável com pouca gordura, açúcar e sal, dormir bem e as horas necessárias, não fumar…Nestes quase 40 anos temos assistido a grandes avanços terapêuticos – e ainda bem, porque evitam-se muitas mortes -, mas o seu objetivo é ajudar a controlar a doença, sempre associada a estilos de vida equilibrados.

 

Nas novas guidelines da ESC 2024 introduz-se o conceito de pressão arterial elevada, já que se considera que o risco cardiovascular é atribuído à pressão contínua, sem escala binária entre normotensão e hipertensão. De que forma esta alteração vai mudar a prática clínica atual?

Estas recomendações alinham agora com as recomendações americanas. Não mudam os algoritmos terapêuticos  – dose inicial baixa, combinação dupla na maioria dos casos – mas mudam os patamares de intervenção.

Notavelmente, como o próprio título reflete, foi criada uma nova categoria chamada pressão arterial elevada.  É definida por PA clínica de 120/70 – 139/89 mmHg ou medição em casa de 120/70 – 134/84 mmHg. De notar que o mesmo valor limite inferior é usado para o diagnóstico de PA elevada no consultório e em casa.

O grupo de trabalho diz que esta nova categoria reflete a evolução ascendente constante da PA ao longo do tempo (idade) e  que alguns destes indivíduos podem beneficiar do tratamento, tendo em vista novas evidências de benefício da terapêutica demonstradas em ensaios clínicos de alta qualidade. Reflete também a crescente evidência do contínuo do risco de eventos cardiovasculares. Por essa razão, a PA <120/70 é agora designada PA não elevada em vez de normal.

Felizmente, o limite para diagnóstico da PA  continua o mesmo valor-limite (>- 140/90), o que é consistente com outras guidelines.

“Hoje sabe-se que o c-LDL não é meramente um fator de risco cardiovascular, é também a causa da aterosclerose”

No âmbito do risco cardiovascular, vai falar-se também de colesterol. Este fator de risco continua a ser o ‘parente pobre’?

Cerca de dois terços da população adulta portuguesa têm o colesterol elevado, com uma  taxa média de colesterol de 210,7 mg/dL. Por outro lado, um inquérito recente à população portuguesa  mostrou que três em cada quatro portugueses desconhece os seus níveis de colesterol, sendo este desconhecimento mais elevado nas faixas etárias mais jovens. Lembro que o colesterol elevado não causa quaisquer sintomas. Quando estes ocorrem, podem manifestar-se, por exemplo, sob a forma de dor no peito, devido a angina de peito ou enfarte do miocárdio, ou mesmo por morte súbita. Estamos, pois, perante uma patologia grave em que é fundamental fazer prevenção. Hoje sabe-se que o c-LDL não é meramente um fator de risco cardiovascular, é também a causa da aterosclerose e portanto deve constituir o um dos principais alvos terapêuticos.

 

Haverá ainda um momento para falar sobre amiloidose cardíaca. Qual o impacto desta doença no risco cardiovascular?

A nossa compreensão desta doença mudou rapidamente nos últimos 10 a 15 anos. Atualmente, reconhecemos que esta doença, que pensávamos ser uma doença muito rara, já não é assim tão rara. Hoje em dia, reconhecemos que a cardiomiopatia TTR está presente em vários cenários clínicos que são frequentemente observados na nossa prática clínica quotidiana. Estudos realizados recentemente demonstraram que cenários clínicos frequentes, como a insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada ou a estenose aórtica grave submetida a implante de válvula aórtica transcateter (TAVI), apresentam cardiomiopatia amiloide concomitante em 10 a 15% dos doentes. Por conseguinte, não podemos continuar a considerar esta doença como uma doença rara. E na prática quotidiana devemos estar conscientes de que estes doentes estão presentes nas nossas clínicas e devemos reconhecê-los, porque existem novas terapêuticas disponíveis para tratar estes doentes.

Outros cenários onde esta doença pode ser encontrada incluem a doença de condução cardíaca, que requer pacemakers sem uma causa óbvia, ou a cardiomiopatia hipertrófica, um aumento da espessura da parede em alguém com mais de 50 anos sem variante sarcomérica, ou com doença cardíaca hipertensiva. É um cenário em que devemos pensar na cardiomiopatia TTR como causa desse aumento da espessura da parede. A suspeita clínica é importante para fazer o diagnóstico precoce, já que hoje dispomos de terapêuticas eficazes para estas situações.

“A solidão social é uma epidemia com riscos significativos para a saúde, nomeadamente ao aumentar a ocorrência de vários problemas (…) como a ansiedade, a depressão, a demência, o AVC e a doença cardíaca”

A IC continua a ser um problema grave de  saúde. Com o envelhecimento da população poderemos assistir a um aumento da sua incidência?

A IC pode ser considerada a epidemia cardiovascular do século XXI. Vai continuar a aumentar devido ao envelhecimento da população (2/3 dos doentes têm mais de 65 anos; metade, mais de 75 anos e um quarto mais de 85 anos). Por outro lado, há um aumento dos fatores de risco devido à obesidade e diabetes, HTA e também por  haver hoje uma menor mortalidade  por enfarte do miocárdio e doença cardíaca valvular, graças ao progressos da medicina.

 

O Professor vai falar sobre solidão e risco cardiovascular? Qual a ligação entre ambos?

A solidão social é uma epidemia com riscos significativos para a saúde, nomeadamente ao aumentar a ocorrência de vários problemas de saúde mental e física, como a ansiedade, a depressão, a demência, o AVC e a doença cardíaca. As consequências nocivas deste risco têm sido comparadas aos de fumar e até se estima que superem os da obesidade e da inatividade física.

Nas sociedades modernas há uma tendência para aumento da solidão, o que vai contra a natureza humana, pois nós somos uma espécie eminentemente social, que precisou ao longo de muitos milhares de anos (e continua a precisar) de outros para sobreviver.

A OMS, em 2022, declarou a solidão um problema de saúde mundial. Em países como o Reino Unido e o Japão já existem ministros da Solidão. Os estudos realizados na população portuguesa mostram que um quarto da população sofre de solidão significativa. Considero, acompanhando o recente relatório do cirurgião geral dos EUA, que abordar a crise da solidão social é um dos mais importantes desafios que a nossa geração enfrenta e precisa de vencer.

 

No final, vai ser atribuído o Prémio Mário Moura. Que palavras gostaria de deixar ao Dr. Mário Moura?

 O Dr. Mário Moura é um príncipe da Medicina e um visionário da Sociedade, teve um papel fundamental na criação da especialidade de MGF, foi presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), de que atualmente é presidente de Honra. Merece toda a nossa admiração e respeito e é um orgulho saber que estas jornadas foram criadas com o seu contributo.

Maria João Garcia

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