Especialista em Medicina Geral e Familiar
A Dor como sinal vital
Há quem defenda a ideia de que mais do que a morte é a dor que torna comum a experiência humana. Talvez, porque de algum modo é a dor que nos acompanha desde a origem, desde o nascimento e talvez até de antes. Lembrei-me de um poema de Emily Dickinson, in “Poemas e Cartas”, traduzido por Nuno Júdice (recentemente falecido), “A Dor Tem um Elemento de Vazio” e da sua primeira quadra:
“A Dor – tem um Elemento de Vazio –
Não se consegue lembrar
De quando começou – ou se houve
Um tempo em que não existiu –“
Vamos já muito longe das concepções e ideias demoníacas ou radicalmente religiosas nas suas diversas variações de época e cenário, as quais apontavam sempre para uma interpretação da dor em termos punitivos ou expiadores, felizmente alterados nos últimos, poucos, séculos.
O facto de a vida caminhar na Humanidade ao lado, bem juntinho da morte, é tão impressionante quanto trágico. Os exemplos mediatizados de sofrimentos e mortes pelo mundo fora, desde o Sudão ao Haiti, desde Gaza à Ucrânia, desde o Afeganistão ao Mar Mediterrâneo falam por si, mas repetem-se a cada instante.
Ficamos todos perante a evidência do ultraje. Ganha, invariavelmente, a morte. Alguns escreveram que isso se deve à pressa da vida… Mas o Homem, o Ser Humano, é estranho e faz sempre as coisas ao contrário… Não espere o leitor que vá explanar alguma teoria ou linha de pensamento em torno de muito mais do que se disse.
Todos sabemos que, mais do que da morte, tememos o sofrimento. E a dor é a cor. Por mero acaso, lia há dias um artigo sobre os imigrantes que se afogam no Canal da Mancha, procurando passar no continente europeu para as Ilhas Britânicas. E o autor escrevia sobre a dor física e da miserável condição de saúde que, os “bem-sucedidos”, apresentavam quando eram detidos em Inglaterra. Entre linhas de humanismo puro e comentários divergentes, lembrava que a dor, enquanto conceito e queixa equiparada a sinal vital, tem poucos anos.
Na verdade, essa equiparação ao 5.º sinal vital foi recente. Nos Estados Unidos, tal reconhecimento data de 1995. Agora que nos aproximamos do novo ano, é altura de recordar estes 30 anos, pesar e partir para novas decisões! Em Portugal, como sempre, entre o tempo quer desperdiçamos na busca da invenção da roda e o usado para discussões estéreis e inúteis – veja-se o recente caso e obsessiva loucura em torno de um suposto orçamento geral do Estado, do qual apenas duas medidas, entre provavelmente mais de um milhar, mereceram prime-time e horas de comentário e especulação – fomos mais lentos. Poderia até supor mais medievais…
De qualquer forma, enfim em 2003 – 8 anos depois dos americanos – lá tivemos a DGS a publicar a famosa circular normativa sobre a dor. Ficou estabelecido que a dor era igualmente equiparada a sinal vital. E tornou-se um critério de boa prática clínica proceder à avaliação e registo correspondente da intensidade e características da dor.
Um passo fundamental, mas cujos resultados estão ainda muito longe de se poderem considerar os mais adequados ao combate necessário. Se a dor é o quinto sinal vital, torna-se vital interromper e tratar a dor.
*O autor escreve de acordo como A.A.O.
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