“A adenomiose é, por regra, mais refratária ao tratamento do que a endometriose”
Pedro Pinto, especialista em Ginecologia e Obstetrícia na ULS de São João e na CUF do Porto, foi um dos oradores da 13ª Reunião Nacional da Sociedade Portuguesa da Contracepção. Em entrevista, o médico fala de endometriose e adenomiose no panorama nacional, nomeadamente em termos de diagnóstico, tratamentos e avanços científicos.
Quais são os principais desafios no diagnóstico diferencial da endometriose e adenomiose?
A endometriose e a adenomiose apresentam sintomas muito semelhantes, porém, existem alguns pontos de diferença. A adenomiose caracteriza-se por um útero globalmente mais aumentado e está mais associada a hemorragia uterina anormal. Por norma, tende a aparecer em mulheres acima dos 30 anos. Por outro lado, a endometriose acarreta mais dor, intensa e limitante, principalmente durante a menstruação. Regra geral, surge em idades mais jovens, nomeadamente na adolescência.
Atualmente, é cada vez mais discutido que a encometriose profunda e alguns tipos de adenomiose apresentam o mesmo processo fisiopatológico. Isto significa que existe uma grande taxa de doentes que, para além de sofrerem de endometriose, têm também adenomiose.
“Aquando de um diagnóstico, muitas vezes não estamos perante apenas uma doença, mas sim de duas que coexistem.”
Que exames de imagem considera mais eficazes para a deteção precoce da endometriose e adenomiose?
Enquanto ginecologista, defendo a ecografia para começar. Trata-se de um exame mais simples, acessível e rápido de fazer. Porém, tem de ser feito por alguém com experiência. Caso o profissional que realize o exame seja, de facto, capacitado, existem vários estudos que comprovam que não existe diferença na sensibilidade e especificidade diagnóstica das doenças, quer sejam observadas através de ecografia, quer de ressonância magnética.
“É necessária experiência para detetar as pequenas pistas que nos dá a endometriose.”
Em casos de endometriose profunda, qual é a abordagem?
Quando estamos perante um caso aparente de endometriose, temos de agir mediante exclusão dos diferentes tipos de doença que podem existir, seja profunda, ovárica ou superficial. Além disso, o facto de, a priori, não serem diagnosticadas mais lesões a uma doente, não signfica que a mesma não as tenha, apenas não as conseguimos identificar. Embora, hoje em dia, não faça sentido realizar uma laparoscopia para diagnóstico, algumas das lesões só são detetáveis através deste método.
Quando existe uma forte suspeita de um caso mais preocupante, seja pela história clínica ou pelo exame físico, de endometriose profunda, regra geral, peço a realização de uma sonovaginografia. Esta intervenção trata-se de uma ecografia com maior detalhe, preenchendo a vagina com gel e permitindo distendê-la melhor, com o intuito de observar os fundos de saco e verificar a presença de possíveis lesões. Normalmente, peço ainda uma ressonância magnética pélvica, uma vez que podem existir lesões não acessíveis à ecografia, bem como para melhor caracterização de lesões, por exemplo, na região do intestino ou da bexiga. Nestes casos, a ressonância permite-nos observar com mais detalhe, de modo a preparar o tratamento da doente em questão, que pode ser médico ou cirúrgico.
Que critérios utiliza para indicar uma doente com endometriose para tratamento cirúrgico?
A opção pelo tratamento médico ou cirúrgico depende da extensão da doença. A cirurgia acarreta sempre complicações e há que ter em conta que o tratamento médico pode ser suficiente para conseguir manter a doente assintomática e sem progressão da patologia. No entanto, caso isso não aconteça, a falha terapêutica é um dos indicadores para a opção cirúrgica.
Outras indicações diretas para cirurgia são quadros agudos, como uma oclusão intestinal ou um problema renal, uma lesão, por exemplo, no ureter, que coloque em risco a viabilidade renal. Também a suspeição de malignidade pode ser um indicador para tratamento cirúrgico.
Já existem marcadores biológicos capazes de auxiliar no diagnóstico de endometriose?
É uma questão interessante, mas que ainda não tem uma resposta concreta. Têm sido trabalhados microRNAs salivares e sanguíneos. Existem uma série de marcadores a ser estudados, para além de vários trabalhos que tentam combinar marcadores. Porém, as taxas de deteção ainda não são suficientemente fiáveis. Acredito que os testes de deteção salivares e sanguíneos de microRNAS ainda venham a ter um papel interessante num futuro não muito longínquo. Neste momento, a evidência está a surgir a um ritmo explosivo e é algo que a indústria tem interesse em comercializar.
Entre as opções terapêuticas existentes, quais as mais eficazes no controlo da dor em pacientes com endometriose?
Em primeiro lugar, temos de conhecer a doente, o tipo de endometriose e perceber se precisa ou não de contraceção. Só este último ponto pode levar-nos por dois rumos totalmente diferentes.
Por exemplo, caso a mulher apresente uma endometriose profunda, um dispositivo intrauterino com libertação de levonorgestrel poderá ser uma boa opção, uma vez que tem uma libertação de progesterona fundamentalmente local, atuando muito perto das lesões.
Por outro lado, no contexto de um endometrioma, em que a ovulação pode ser uma das principais responsáveis para o seu aparecimento, a contraceção hormonal combinada que inibe a ovulação poderá ser uma das principais opções, desde que não existam contraindicações. Já existe, também, maior discussão em torno dos antagonistas orais do GnRH, que inibem o eixo hipotálamo-hipófise-ovários, também com muito bons resultados. Por norma, o tratamento inicial ainda é hormonal, sendo a maioria destes, contracetivo. De salientar que, apesar de este método não curar a doença, pelo menos dois terços das doentes respondem à contraceção hormonal combinada ou aos progestativos.
Observa diferenças na resposta ao tratamento hormonal entre pacientes com endometriose e com adenomiose?
A adenomiose é, por regra, mais refratária ao tratamento do que a endometriose, ou seja, é muito mais difícil tratarmos uma adenomiose pura do que uma endometriose. É uma doença que, embora já tenha sido descrita há muitos séculos, ainda é pouco reconhecida e ainda está menos estudada do que a endometriose. Parte dos tratamentos que temos aplicado na adenomiose surgiram um pouco por imitação do que fazemos na endometriose. Tal como já referi, dado que existe uma base fisiopatológica que defende uma teoria que indica que ambas as doenças podem ter a mesma origem, tentou-se extrapolar o tratamento de uma patologia para a outra. O problema é que o tratamento na adenomiose não é tão eficaz como na endometriose.
Quais são as implicações na fertilidade causadas pela endometriose e pela adenomiose?
Em termos de impacto na fertilidade, a adenomiose pode ter uma vantagem. Embora, aparentemente, também tenha uma associação estatisticamente significativa com infertilidade, parte das doentes são mais velhas e já tiveram filhos. No entanto, caso não tenham tido, a situação pode ser mais difícil de gerir.
Recebemos muitas doentes com um volume uterino aumentado, com um distúrbio da camada endometrial mais interna e, portanto, temos um contexto inflamatório que pode dificultar a implantação. Não é tão fácil de tratar nesse contexto, mas existem opções, como os agonistas ou os antagonistas da GnRH para diminuir o volume uterino e tentar um ciclo de fertilização, ou simplesmente, numa fase inicial, deixar a mulher tentar engravidar.
Na endometriose, dependendo da gravidade da doença, sabemos que 30 a 50% das doentes têm mais dificuldade em engravidar. Ainda assim, não significa que não é possível. Há múltiplas causas para infertilidade associada à endometriose. No entanto, numa fase inicial, desde que não haja risco de compromisso de nenhum órgão, o ideal é deixar a doente tentar engravidar. Caso consiga, fantástico. Se não conseguir tão cedo como desejável, deve ser encaminhada para uma consulta dedicada de fertilidade e aí a opção cirúrgica pode ser necessária, por exemplo, para restaurar a anatomia, ou devido ao endometrioma volumoso que impede algum tipo de tratamento.
“Há muitos aspetos que podem condicionar a fertilidade, mas existe alguma taxa de sucesso de gravidez espontânea em doentes com endometriose.”
Existem novidades promissoras a nível de investigação que acredita serem capazes de impactar a prática clínica?
A adenomiose continua um pouco em segundo plano. Existem alguns tratamentos utilizados, por exemplo, para os leiomiomas uterinos, como a embolização das artérias uterinas, ultrassons ou a ablação por radiofrequência, que são técnicas não cirúrgicas, mas também não são propriamente medicamentosas, que podem ter algum papel relevante no futuro do tratamento desta doença. Relativamente aos antagonistas da GnRH na adenomiose, a evidência ainda é fraca, mas confesso ter alguma esperança. Estes fármacos existem no mercado há cerca de dois ou três anos e a experiência a longo prazo ainda não existe, mas estamos a começar a adquiri-la.
Em relação à endometriose, existem várias investigações em curso. Os antagonistas encontram-se mais estudados do que no caso da adenomiose e têm uma taxa de sucesso bastante satisfatória, inclusive já são utilizados em casos refratários ao tratamento médico habitual.
Além disso, sabemos que a endometriose tem um estado inflamatório muito importante associado; existem uma série de fármacos com ação anti-inflamatória que estão a ser testados. Alguns são muito simples, como as estatinas, ou que estejam relacionados com a formação de células sanguíneas e a angiogénese, que permite conduzir mais células inflamatórias e potenciar a lesão. Outros métodos que também podem ser interessantes são os fármacos associados com manipulação do ADN.
Na endometriose podem existir alterações epigenéticas, transmissíveis, que potenciam a que as alterações se prolonguem durante mais tempo. Atualmente, já existem fármacos capazes de atuar em termos de ADN, o que pode ser interessante no contexto da doença. Porém, não é certo que a indústria esteja preparada para procurar soluções além da contraceção hormonal, que é um tratamento muito eficaz e que resulta em dois terços das doentes. Acredito que os tratamentos que mencionei têm um potencial muito interessante. Apesar de o tratamento hormonal não conseguir curar a doença, se conseguirmos atuar na inflamação, na vascularização e até no ADN, podemos conseguir curar algumas doentes, mas apenas a longo prazo.
Qual a importância de uma abordagem multidisciplinar no tratamento de mulheres com endometriose e/ou adenomiose?
É muito importante, por vários motivos. Quando falamos em endometriose ou adenomiose, falamos num espetro de doença. Pelo menos um terço das doentes com adenomiose são totalmente assintomáticas e, neste contexto, a abordagem multidisciplinar não tem fundamento.
No entanto, se pensarmos numa doente com endometriose com 30 anos, sem diagnóstico feito, que sente dor desde a adolescência e que, no presente, já tem uma dor pélvica crónica que ainda agrava com a menstruação e que está verdadeiramente deprimida, tendo em conta a condição que tem, a doença tem um impacto muito forte no seu dia a dia. Este é um caso em que o tratamento multidisciplinar deve entrar em ação. Pode ser necessária a ajuda de um anestesiologista no controlo da dor e de um profissional da área da Medicina Física e de Reabilitação para fisioterapia do pavimento pélvico, que pode ter um papel muito importante, principalmente na dispareunia.
Depois, obviamente, um ginecologista dedicado ao estudo no contexto dos exames de imagem, bem como uma abordagem psicológica e, eventualmente, psiquiátrica, com o apoio necessário para estas doentes. Por vezes, existem casos complicados, que mesmo após abordagem cirúrgica, mantêm sintomas, uma vez que questões relacionadas com dor pélvica crónica ou psicológicas permanecem inalteradas. Assim, uma abordagem multidisciplinar pode melhorar muito a condição das doentes. É importante ter a sensibilidade para, ao abordar o problema, perceber que não estamos apenas a tratar uma lesão, por exemplo, profunda, mas sim algo muito mais complexo do que isso.
Cláudia Gomes
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