A liberdade de escolha
A existência de liberdade de escolha deve ser a pedra-base de um Sistema de Saúde por duas razões fundamentais que se situam em dois planos muito distintos:
– Pela importância que tem, em Saúde, ser-se tratado e acompanhado por alguém em quem se confia.
– Porque só a Liberdade de escolha permite a competição por clientes e esta é o elemento energético sustentado de qualquer organização, que se repercute do Administrador ao porteiro, e que a obriga a uma permanente melhoria. Só com liberdade de escolha será possível centrar o Sistema de Saúde e as suas instituições no cidadão.
No actual Serviço Nacional de Saúde, baseado em multi-monopólios, quer os Departamentos ou Serviços tenham ou não qualidade, quer produzam ou não produzam, a verdade é que nada lhes acontece. E se nada acontece aos Departamentos e Serviços muito menos acontece às pessoas que neles trabalham. Quer cumpram quer não cumpram. Têm o lugar e a remuneração (acrescida de promoções administrativas e bónus como o da exclusividade) assegurados até à reforma.
É verdade que em todo o lado existem pessoas competentes e dedicadas. Mas estamos a falar de linhas de força.
Uma Organização que viva num ambiente de competição por clientes (seja um Hospital, um departamento, um serviço, uma USF…) e que saiba que pode fechar se não tiver clientes que a sustentem, obriga-se a que todos os seus recursos humanos sejam competentes, dedicados e atenciosos com os seus utentes. As chefias passarão a ser escolhidas tendo como base quem consegue puxar por uma organização no sentido de prestar um Bom Serviço e não por quem sabe ser simpático para os profissionais. Quem não cumpre sabe que não tem lugar na organização. Mas quem cumpre e se destaca coo uma mais valia para a Instituição verá também o seu esforço recompensado.
Falo em Competição e não em Concorrência porque esta envolve na competição a questão do preço. Ora no âmbito de um Sistema de Saúde concorrer pelo preço pode ser feito, de forma não imediatamente visível, sacrificando padrões de qualidade, quer ao nível de equipamentos quer ao nível de recursos humanos e de desempenhos. Por isso defendo um Sistema de Pagamento que, embora inteligente incentivando ou desincentivando, seja comum a todas as organizações do Sistema de Saúde.
O actual modelo de SNS em que cada organização tem o monopólio dos seus utentes (geralmente em função de áreas geográficas determinadas) não só recompensa as organizações com má prestação (fazendo menos e/ou pior recebem o mesmo do que as que fazem melhor) como impedem as mais dinâmicas de crescerem porque não têm aonde ir buscar mais doentes, acabando estas mais cedo ou mais tarde por aderirem à mediania status quo.
Para se perceber o dramático que é o monopolismo e ausência de respostas que este gera tenho presente os doentes da minha lista de utentes, que, com situações clínicas graves ou dolorosas e incapacitantes, têm que recorrer, às suas custas, a soluções privadas por completa ausência de resposta no SNS.
Para se perceber as vantagens de um sistema de liberdade de escolha, liberdade de iniciativa e de investimento, e de competição, temos o sector convencionado dos exames complementares de diagnóstico que sempre apresentou grande dinamismo e capacidade de ajuste e resposta à procura, sem listas de espera e com resultados entregues quase na hora. Os avanços tecnológicos nesta área entraram sempre pelos “privados”
Como Escolher
A verdade é que na saúde nem tudo o que luz é ouro, e por isso para o doente poderá ser difícil escolher de forma competente o serviço ou o profissional indicado para o seu caso.
Por outro lado, o desenvolvimento da saúde quer ao nível de meios de diagnóstico quer ao nível do estabelecimento de protocolos clínicos em muitas áreas fez passar a importância da escolha de um profissional mais para a escolha de uma organização ou serviço.
Também é verdade que as decisões de submeter, ou não, um doente a uma cirurgia, podem ser enviesadas em função dos interesses de quem presta o serviço. Um serviço público sobrecarregado poderá tender a não a valorizar e postergar uma intervenção cirúrgica e um cirurgião em regime liberal facturando (bem) ao acto e com uma potencial clientela limitada poderá tender a sobrevalorizar e a intervir em situações em que se calhar não era necessário.
Organizações que prestam vários serviços podem tender a fazer o doente passar por todos eles levando a um excesso desnecessário de consultas e exames.
Bagão Felix, num excelente artigo no Expresso há uns anos atrás, resolvia o problema atribuindo o papel da escolha (chamando-lhe “o fazer o shoping around”) às Seguradoras, esquecendo que estas também têm fortes interesses económicos envolvidos na decisão.
Quem a nosso ver deverá ser o auxiliar e defensor dos interesses do doente deverá ser o seu Médico de Família. Os Médicos de Família devem desenvolver competências na área da referenciação e devem ser eles os verdadeiros clientes dos Cuidados Secundários.
Por isso aquela que deve ser a escolha fundamental num Sistema de Saúde que um cidadão terá que fazer é a do seu Médico de Família. Vivendo da sua lista de utentes (e num ambiente competitivo como hoje não existe) percebe-se que os interesses dos doentes sejam também os interesses do seu Médico de Família. Para que isto seja possível é importante que os Cuidados de saúde Primários sejam independentes dos Hospitais. O Sistema de Unidades Locais de Saúde, defendido por muitos, que integra numa única organização os cuidados primários e secundários faz do médico de família o porteiro do Hospital aumentando ou diminuindo a referenciação interna em função dos interesses da Organização e não dos do doente. Integração leva ao reforço do monopólio. Só haverá referenciação interna. O contrário do que aqui se defende.
Em tempos um Director do Serviço de Patologia Clínica de um dos principais hospitais da capital lamentava-se de falta de apoio para implementar postos de colheitas nos centros de saúde e extensões. Medida que à primeira vista parece louvável, mas que na prática consagraria um monopólio que levaria ao fecho dos laboratórios existentes em Lisboa ficando os utentes sem alternativas. É caso para perguntar porque é que, pelos vistos, o Laboratório desse hospital está sobredimensionado ou porque não se dispõe a concorrer em pé de igualdade com os Laboratórios existentes abrindo por sua iniciativa postos de colheita e facturando pela mesma tabela (e não pela do SNS que é mais alta- o que é outro escândalo demonstrativo da ineficiência do sector público) e recebendo na mesma altura e com os mesmos meses de atraso que os laboratórios que estão no mercado?
Como implementar a Liberdade de Escolha num Sistema de Saúde
Ou como passar da utopia à realidade
Em primeiro lugar temos que ter a noção de que para se conseguir verdadeiramente a implementação de um dinâmico sistema competitivo por clientes, em que umas Unidades possam fechar, outras aumentar e outras aparecerem de novo, é indispensável que o Poder político, sobretudo o central, se retire da administração directa das Unidades de Saúde e da administração directa do financiamento. Uma das máximas dos governos mais liberais que tivemos foi “só se pode recorrer à contratualização de privados quando (e enquanto) a capacidade pública estiver esgotada”
De facto, os partidos quando chegam ao Poder nomeiam as administrações das várias instituições e estas depois passam a confundir o interesse público com o seu interesse e o das quintas (instituições) que dirigem. Também é verdade que o Estado não aceitará pagar a terceiros por um serviço que ele próprio presta e sustenta administrativamente.
Por isso só uma grande consciência e determinação política, prévias à constituição de um Governo, possibilitam uma Reforma neste sentido.
Primeira Medida
Assim a primeira medida a tomar será a de constituir uma entidade independente e autónoma que seja sede do fluxo financeiro. Por razões várias eu chamar-lhe-ia Seguro Social de Saúde (SSS).
Seria este o terceiro pagador.
A sua implementação passa por duas vertentes essenciais : i Nomeação de alguém muito competente para o pôr de pé e dirigir.ii A existência de um órgão tripartido de concertação com representantes esclarecidos dos Cidadãos (Deco e outros), do Estado e dos Prestadores que decidisse as tabelas de pagamento dos cuidados de saúde e as contribuições a pagar pelos cidadãos para este Seguro Social de Saúde que deverá ser visto como uma mútua. Todos pagam o mesmo e todos estão igualmente protegidos independentemente da idade ou grau de risco.
O Estado orientará o dinheiro que actualmente gasta no financiamento da Saúde (que deixa de ser necessário porque os prestadores passarão a ser financiados/pagos pelos serviços que prestam pelo SSS) para se substituir às famílias (total ou parcialmente) no pagamento das prestações para o SSS em função das incapacidades económicas das mesmas. Aqui a forma como se apresenta politicamente a questão é muito importante. Não se trata de os ricos pagarem mais, mas sim do princípio de “todos pagam e o Estado ajuda no pagamento quem não pode”. Não se trata de Justiça Social/Fiscal. Trata-se de pragmatismo e de solidariedade social.
Desta forma se consegue, se e quando for necessário, ir aumentando e alargando gradativamente as contribuições para a Saúde sem recorrer ao Orçamento de Estado, de forma indolor e sem convulsão social
Por outro lado, caberá ao órgão de concertação tripartido do SSS analisar permanentemente os fluxos financeiros e decidir ou aumentar as contribuições e/ou diminuir as tabelas de preços de forma a deixar em paz o OE.
Na base do SSS um sistema informático único abrangendo todos os prestadores, que poderá abranger as vertentes clínicas (preferencialmente) ou no mínimo articular-se com os sistemas clínicos dos vários prestadores.
Assim o SSS deverá ser visto como:
O Terceiro Pagador – que garantindo a segurança do financiamento a montante possibilita a liberdade de iniciativa para o acolher.
Sede da Solidariedade – Garantindo o financiamento dos cuidados a todos, por igual, e sendo paga por todos por igual (comparticipando o Estado em função das incapacidades económicas) poderá progressivamente captar mais dinheiro para aquele fim (conseguindo-se assim mais dinheiro para o sistema e à custa de quem o pode fazer).
Sede de Concertação – O SSS terá um Concelho Geral com representantes “esclarecidos” do Estado, dos Cidadãos e dos Prestadores aonde se encontrará um equilíbrio entre a Prestação, Financiamentos e Tabelas
Sede de Racionalidade e Qualidade– Os pagamentos (tabelas de pagamento) serão “inteligentes”, feitos em função de princípios racionais que estimulem as boas práticas clínicas e “ganhos em saúde” e que por outro lado evitem o abuso e o desperdício. Contratualização esclarecida será a palavra chave (contratualização esclarecida com os prestadores, mas também como os beneficiários estabelecendo os limites dos seus direitos e deveres)
O SSS deverá assim ter um forte e profissionalizado departamento técnico/cientifico.
Retirar o Estado do Papel de financiador e prestador e passar o financiamento para um organismo que no fundo é (e deve ser estimulado que seja sentido como tal) dos cidadãos e gere o seu dinheiro e o financiamento dos seus cuidados de saúde, talvez nos permita sair do paradigma “Como é do Estado temos direito a Tudo”. O Estado tem que dar tudo”
Por outro lado é também a galinha dos ovos de ouro para os prestadores que no seu interesse a terão de preservar.
O equilíbrio dos interesses dos cidadãos (no binómio financiador e receptor de cuidados) , dos prestadores e do Estado será a chave.
Segunda Medida
Resolvida a questão do financiamento da Saúde com um SSS que garante a estabilidade do financiamento é possível avançar com a segunda medida que é retirar o Estado da Prestação. Ou seja, transformar a actual rede pública do SNS numa rede de unidades de gestão privada , convencionadas/contratualizadas com o SSS.
Não se trata de criar um sistema privado, mas sim conseguir um SNS em que os prestadores são “privados” mas vinculados exclusivamente ao SNS continuando o acesso a ser universal e gratuito, sem prejuízo da existência de taxas moderadoras como agora.
A passagem de unidade pública para unidade privada deverá ser iniciativa de cada unidade que escolherá o modelo que entender (cooperativa, empresa de profissionais, empresa privada, concessão de gestão, privatização, etc.) e os parceiros que entender. Um hospital poderá ser uma unidade única ou um conjunto de unidades. Este processo que parte da iniciativa das Unidades pode iniciar-se logo desde o princípio e deverá estar concluído ao fim de um ano, altura em que o SSS estará já pronto a funcionar. Aonde as Unidades não avancem com propostas o MS abrirá um concurso público visando a concessão da gestão.
Para além das Unidades do SNS existentes poderiam ainda aderir a esta Rede todas as Unidades privadas que a ela quisessem aderir.
A liberdade de escolha é um bom leitmotiv para a transformação do actual modelo burocrático de SNS para um SNS assente numa rede de unidades “privadas” convencionadas/ contratualizadas com o SSS. Mas igualmente importante são dois aspectos: permitir a iniciativa e investimento privado na saúde que o Estado falido não está em condições de fazer e ganhar em eficiência livrando os contribuintes do peso do desperdício que assim passaria a ficar por conta de cada Unidade. O Estado, através do SSS só pagaria o que foi realmente feito. Não o desperdício e a ineficiência.
Esta proposta que faz a síntese do pensamento Beveridgeano assente no universalismo e igualdade no acesso e do pensamento Bismarkiano assente em redes convencionadas e liberdade de escolha. Faz igualmente a síntese entre o pensamento socialista português e o pensamento mais liberal social-democrata, pelo que se os dois Partidos estiverem dispostos a unirem-se para levar este País avante, procedendo às profundas reformas estruturais que o País necessita, esta proposta poderia ser uma boa base de trabalho.
3ª medida
Ainda no campo das ideias existe um importante terceiro nível de competição, a Competição entre a Rede do SNS e uma Rede Complementar privada suportada pelo Seguro Privado Complementar.
Vantagens :
– estimular a diferenciação dos profissionais que começam a carreira no SNS tendo em vista o salto para Unidades da Rede Privada. Esse esforço teria reflexos positivos no SNS enquanto ele lá estivesse.
– Aumentar a exigência competitiva – As unidades do SNS não só teriam que competir entre si como também com as Unidades privadas. A melhoria da rede do SNS levaria por sua vez a que a Rede do Seguro Privado tivesse que se distinguir ainda mais criando-se uma espiral competitiva indutora de mais acessibilidade e qualidade.
Como Implementar:
Actuando enzimaticamente de forma que as Seguradoras se conciliassem num único Seguro de saúde e numa única rede privada à semelhança que a banca fez com a Unicre/Cartão Unibanco, recebendo apenas uma taxa de serviço de intermediação. Somos um País demasiadamente pequeno para esta guerra fratricida de seguros e redes privadas, aonde um doente precisa de um determinado médico mas já não pode ir porque está noutra rede e não na sua).
Oferta de uma rede única aonde estivessem todos os privados seria muito mais atractiva
Como estímulo adicional para esta solução o Estado poderia numa primeira fase permitir alargar aos “privados” a comparticipação pelo SSS nos exames complementares de diagnóstico e numa segunda fase alargando mesmo a todos os actos a comparticipação pelo SSS e sua tabela, de forma que o Seguro Privado seria verdadeiramente apenas complementar pagando apenas a diferença entre a Tabela do seguro privado e a Tabela do SSS. Desta forma o Seguro Privado teria menos riscos e menos encargos e poderia ser bem mais barato o que estimularia a sua procura e a competitividade entre SNS e Rede Privada
Esta rede privada assentaria também em Médicos de Família “Privados” que seriam os referenciadores
Os doentes não perderiam o seu direito a usar a rede do SNS e se optassem por um Médico de Família do SNS este tanto os poderia referenciar para cuidados no SNS ou na rede do Seguro Privado e vice versa. Um Médico de Família da rede privada tanto poderia referenciar para uma unidade de uma rede ou de outra
Contudo só se deverá avançar para esta solução depois de se consolidar o SSS e a transformação da Rede do SNS numa rede Convencionada com o Seguro de Saúde. É necessário que a rede do SSS consiga fidelizar a classe média sob pena de deixa de haver capacidade reivindicativa que assegure a sua melhoria contínua; evitando a situação de se ter um sistema para ricos e outro, degradado, para pobres, que possa levar a uma rotura social e entalar a classe média.
Ps: este artigo é uma atualização de um outro publicado em 2011 numa revista, ”Cadernos de Saúde”, da responsabilidade do atual Ministro da Saúde, Por. Adalberto Campo Fernandes. O tema desse número era a Liberdade de Escolha. O Prof Adalberto Campos Fernandes escreveu sobre “A Liberdade de Escolha no SNS” E de facto a sua implementação terá sido das poucas Reformas que executou. Mas como o dinheiro não seguiu o doente e as instituições não tiveram como se adaptar à procura, isto resultou num dramático aumento dos tempos de espera nos Hospitais de Referência…
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