21 Nov, 2024

“Um dos grandes receios era que os CSP fossem ‘engolidos’ pelos hospitais e nalguns locais isso aconteceu”

Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), faz um balanço das mudanças que se têm sentido, nos últimos meses, no setor da saúde, em particular nos CSP. No caso específico das unidades locais de saúde (ULS), o responsável fala em assimetrias regionais e apela a que não seja posta em causa a autonomia dos cuidados primários.

Que balanço faz da expansão das ULS e do impacto que as mesmas estão a ter na reforma dos cuidados de saúde primários (CSP)?

É um balanço assimétrico, depende de cada região. O problema está em se optar por aplicar a mesma solução em todos os locais, sem se ter em conta as realidades locais, como a dimensão, o número de recursos humanos, se se trata de uma ULS universitária… Nalgumas regiões, os resultados são mais positivos, noutras não tanto; numas, os CSP são mais esquecidos do que noutras…É difícil dizer se esta expansão, a nível global, é positiva ou negativa – até por ter passado ainda pouco tempo. De qualquer forma, precisamos, de facto, de um modelo mais ajustado a cada realidade. Um dos grandes receios era que os CSP fossem ‘engolidos’ pelos hospitais e nalguns locais isso, infelizmente, vai acontecendo.

Mas são ‘engolidos’ de que forma?

Não existe um padrão, mas isso é visível em diversas áreas. Por exemplo, na gestão dos recursos humanos: veja-se a situação atual dos concursos para recém-especialistas. Não se trata de culpabilizar uma ou outra ULS, a questão está nas dificuldades inerentes ao processo. O concurso arrastou-se penosamente no tempo e, nalguns casos, ainda não está concluído. Esta situação é muito preocupante, é um retrocesso em relação ao que se tinha. Existem também problemas na forma como se interpreta a autonomia das unidades de saúde familiar (USF), unidades de cuidados de saúde personalizados (UCSP), das unidades de cuidados na comunidade (UCC), flexibilidade e contratualização, horários … tudo isto tem levado a uma aproximação àquilo que é a cultura hospitalar, o que é errado. São realidades e contextos distintos.

Além disso, há vários relatos de questões logísticas e administrativas que se tornaram mais complexas, rígidas e difíceis e nalguns casos até se perdeu proximidade, por mais estranho que isto possa parecer. O objetivo das ULS é precisamente aproximar, integrar, cuidados primários e hospitalares.

Reconheço, contudo, que em muitas ULS não se verificou um reforço dos recursos humanos, o que também contribuiu para determinados problemas. Na prática, juntaram-se cuidados primários e hospitalares sob o mesmo chapéu, mas não se aumentou o número de pessoas para as mais diversas áreas: Aprovisionamento, Farmácia, Recursos Humanos, etc. Se se dá muito trabalho a serviços que já estão muito depauperados, a situação só pode piorar.

Relativamente ao concurso dos recém-especialistas, existe a possibilidade de se voltar a ter um concurso nacional, mas, na sua opinião, também deverá ser possível a contratação direta por parte das ULS sempre que tenham necessidade de médicos?

Temos, de facto, de encontrar uma solução alternativa ao concurso nacional, que, provavelmente, poderá passar pela contratação direta. O concurso nacional já mostrou vantagens e desvantagens. Claramente era um método melhor do que o que tivemos este ano, mas com a  generalização das USF modelo B é preciso garantir  a sua autonomia, prevista na lei. Podemos até pensar, por exemplo, num modelo que permita as duas soluções, porque as ULS poderão precisar de ocupar vagas, consoante as necessidades que vão surgindo. Seja qual for a opção, é preciso sempre respeitar a autonomia das USF.

“Há colegas que, de facto, estão muito desiludidos, não se consegue contratar todos aqueles que são necessários, em várias ULS há vagas que ficam vazias…”

Os problemas que houve com este concurso tem levado a que haja ainda mais jovens a não optarem pelo SNS?

Essa é uma realidade já habitual noutros concursos, neste ainda mais. Quando passamos 6, 7, 8 meses à espera de colocação, sem se vislumbrar quando a mesma poderá acontecer, é normal que isso assim seja. Pior, estes jovens, apesar de se já trabalharem como especialistas, mantêm a sua remuneração como internos. Naturalmente, começam a pensar em alternativas. Repare-se no que está a acontecer: logo no início da carreira como especialistas, não estamos a mostrar que nos preocupamos com eles. Ora, acabam, inevitavelmente, a olhar para o setor privado, social  ou para o estrangeiro. Até podem pensar em ter outro rumo profissional…

Há colegas que, de facto, estão muito desiludidos, não se consegue contratar todos aqueles que são necessários, em várias ULS há vagas que ficam vazias… Continua-se a eternizar o problema, não o resolvendo. A solução está apenas em concursos mais céleres? Não, também há muitas outras coisas.

Gerou uma certa polémica a assinatura de aceitação de profissionais nas USF a pedido da ACSS. Como vê esta situação?

É preciso compatibilizar aquilo que é a autonomia das USF com a colocação de recém-especialistas. Já se provou que este modelo não funciona e daqui para a frente a maioria das vagas vai ser em USF. Isto cria uma pressão nestas unidades: se não assinarem, a vaga pode ficar vazia. É preciso um sistema paralelo, como a via direta. Esta assinatura é confrangedora, porque se não se assinar, as vagas não são colocadas a concurso.

“Continua-se a olhar de forma séria para indicadores, atividade assistencial, produção, mas estes não traduzem sempre o que se passa na prática”

Não há um certo choque de cultura organizacional entre CSP e hospitais?

Sim, existe sempre um choque cultural.  De ambas as partes, existe um grande desconhecimento de como funcionam os dois níveis de cuidados. Isso levanta várias questões complicadas. Mas também é engraçado perceber que, a nível hospitalar, há uma tendência grande em se criar centros de responsabilidade integrada (CRI). Estes não são mais que a transposição da cultura das USF para o ambiente hospitalar. Acho curioso que os CRI sejam anunciados como uma prática revolucionária, mas, na prática, são a replicação do modelo USF nos CSP. O caminho é este: autonomia com responsabilidade. É preciso assumir um rumo!

Em termos de avaliação do desempenho, como estão as coisas?

O SIADAP é um sistema perfeitamente desajustado à realidade médica! Continua-se a olhar de forma séria para indicadores, atividade assistencial, produção, mas estes não traduzem sempre o que se passa na prática. Além disso, o SIADAP é um processo de avaliação extremamente burocrático e não se teve em conta, nos processos avaliativos, a transição das administrações regionais de saúde (ARS) para as ULS. Mudaram os avaliadores e ainda há muitas dúvidas de como se pode gerir este processo.

Apesar desta conjuntura atual, o que tem acontecido, nos últimos anos, é que esta avaliação [do SIADAP] não é aplicada e estamos a colocar todos como igual, sem se ter em conta o mérito. Isto tem implicações na carreira médica, que precisa de ser revitalizada; não se pode manter apenas os graus de carreira que existem atualmente, em que a maioria dos colegas chega a assistente graduado já com algum atraso e depois nunca mais sobe de patamar… O SIADAP é, de facto, mais um problema dentro do problema da avaliação.

“Isto não devia acontecer! É injusto para as equipas, porque, no caso dos MCDT, muitas das respostas não dependem da equipa”

Acresce ainda a falta da equipa de acompanhamento das USF modelo B…

A decisão de se alargar o modelo B ao maior número de equipas é positiva, mas não chegou da forma como desejaríamos. Na prática, temos USF modelo B com diferentes velocidades  e com esquemas remuneratórios que não são totalmente iguais. A APMGF sempre disse que o acompanhamento próximo não pode ser feito apenas pelas direções clínicas para os CSP das ULS, que não chegam obviamente  a todo o lado. Essas equipas têm de ser de proximidade e não devem, obviamente, seguir uma lógica punitiva, porque queremos que as equipas trabalhem bem e não apenas para números. Está prevista a Equipa Nacional de Apoio, mas ainda não está no terreno. Foi uma boa decisão em se avançar com a generalização do modelo B, mas ainda não chegamos ao que era desejável  e temos de continuar a lutar pelo que é preciso.

Ainda há a questão do índice de desempenho com base no número de MCDT prescritos e de fármacos. Este ponto ainda vai dificultar mais esta transição?

Exato. Isto não devia acontecer! É injusto para as equipas, porque, no caso dos MCDT, muitas das respostas não dependem da equipa. Há muitas dificuldades em se conseguir exames a nível hospitalar. Muitas vezes são os CSP que tomam conta da situação, quando não é possível no hospital. Quem sai prejudicado é o médico dos CSP. Isto é profundamente injusto!

Há outros pontos que deveriam ter sido acautelados e que não foram, nomeadamente nas regiões de menor densidade geográfica, onde os critérios atuais de modelo B foram muitas vezes não aplicáveis ou os profissionais não receberam suplementos. Nalguns locais há listas mais pequenas em termos de dimensão, mas com muitas unidades ponderadas. Quando não atingem o tal número absoluto, os profissionais não têm direito a quaisquer incentivos, apesar de não poderem aumentar as listas de utentes por razões óbvias: não há mais utentes.

E o modelo C. Por que têm receio?

O modelo C está previsto desde o início da reforma, mas nunca foi aplicado nem sequer legislado. Este modelo foi pensado, inicialmente, para ser a solução para locais onde o SNS não conseguia chegar. Mas o que foi anunciado é que estas unidades C seriam entregues aos setores privado e social. No início da reforma até se pensou em cooperativas de médicos e de enfermeiros, que iriam tomar conta da região…

Nalguns locais até poderemos vir a ter uma resposta positiva com esta medida, mas se a única ideia é pensar-se que a única solução é levar o setor privado e social aos sítios mais recônditos, isso é uma ilusão. Nessas localidades não há setores privado e social. E se a única ideia é entregar as unidades de saúde a parcerias público-privadas então só há uma hipótese: têm de se dar condições mais benéficas para que essas entidades tenham interesses em gerir as unidades. A nossa questão é esta: o modelo pode ter as suas virtudes – e  certamente terá – e bem pensado poderá resolver problemas nalguns locais, mas não acreditamos que seja a panaceia.

“Este não pode ser o caminho! Também não colocamos ortopedistas na Pediatria!”

Em relação aos doentes sem médico de família, que costumam ser os mais vulneráveis, projetos como as vias verde terminaram. O que se pode fazer para já para que estes cidadãos tenham cuidados de saúde?

As vias verde pareciam ser a solução. Eram projetos estruturados, organizados, liderados por médicos de família – em permanência, coordenando equipas multiprofissionais. Mas o que fizeram? Mudaram, desconstruíram o que estava feito. Ter centros de atendimento para dar resposta avulsa, não é sinónimo de seguimento de proximidade. Acabou-se por enviar as pessoas das vias verdes para as UCSP, já de si depauperadas. Isto não é resposta! Devíamos ter alargado as vias verde. Mais uma vez, temos uma resposta eternamente adiada no que diz respeito aos utentes sem médico de família.

 

Existe receio de que, além da fuga do SNS, que haja quem prefira não escolher a especialidade de MGF?

O desencanto não é com a especialidade em si, mas com as condições de trabalho. O problema está na contratação de colegas sem especialidade ou de outras áreas. Este não pode ser o caminho! Também não colocamos ortopedistas na Pediatria!

Relativamente à APMGF, o WONCA 2025 vai ser o ponto forte nos próximos tempos?

Sem dúvida! A APMGF vai sempre manter as suas duas vertentes: a socioprofissional, para que se dê voz aos médicos de família, mas também a formativa. Queremos manter a aposta numa atividade científica forte. A atividade não se resume à WONCA, vamos ter também o Encontro Nacional e webinares, jornadas, cursos, etc. Mas, obviamente, a WONCA será inevitavelmente marcante para a MGF em Portugal, porque é a primeira vez que temos este grande encontro mundial no nosso país.

Maria João Garcia

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