Podemos Decifrar (Computacionalmente) as Trajetórias Clínicas em Doenças Neurodegenerativas?
Docente Universitário, Doutorado em Bioengenharia e Aluno de Medicina

Podemos Decifrar (Computacionalmente) as Trajetórias Clínicas em Doenças Neurodegenerativas?

As doenças neurodegenerativas representam um dos maiores desafios na prática clínica moderna, tanto pela variabilidade de sintomas como pela complexidade no diagnóstico diferencial. Esta heterogeneidade de manifestações clínicas torna possível o erro de diagnóstico, comprometendo intervenções terapêuticas eficazes e a precisão de estudos epidemiológicos. Neste contexto, podemos pensar que a aplicação combinada de Processamento de Linguagem Natural (NLP) e modelação de dados clínicos como uma solução para mapear trajetórias clínicas que podem melhorar o diagnóstico e acompanhamento destas doenças.

Um estudo recente1 com uma amostra de 3042 doentes do Netherlands Brain Bank explorou uma metodologia de NLP para processar resumos de história clínica. O objetivo foi a criação de trajetórias clínicas para mais de 80 sinais e sintomas neuropsiquiátricos, observados ao longo da progressão de doenças como a Doença de Alzheimer (DA), Parkinson, Demência com Corpos de Lewy (DCL), Demência Vascular (DV) e diversas variantes de demência frontotemporal. A coorte, composta por indivíduos que haviam doado tecido cerebral para fins de investigação, revelou-se particularmente rica em diversidade diagnóstica, o que permitiu uma análise abrangente da sintomatologia e dos padrões temporais de progressão de múltiplas doenças.

Este estudo revelou dados bastante promissores quanto à precisão das trajetórias clínicas geradas. O algoritmo de NLP treinado para identificar e categorizar sintomas em história clínica teve uma precisão de 86% na identificação de sintomas-chave, como demência, bradicinesia, impedimento de memória e depressão. Foram analisadas mais de 18917 frases clínicas, com um foco na validação interobservador para assegurar a consistência e fiabilidade dos dados obtidos. Uma das observações mais significativas foi a capacidade do modelo em discriminar subtipos clínicos dentro de doenças tradicionalmente difíceis de diferenciar, como os subtipos de Parkinson e as variantes de Esclerose Múltipla. A análise dos dados permitiu ainda a criação de perfis sintomáticos temporais únicos para cada diagnóstico neuropatológico. Por exemplo, os sintomas de “impedimento motor” e “fraqueza muscular” revelaram uma associação elevada com a Esclerose Múltipla e a Doença de Parkinson com Demência (PDD), enquanto “depressão” demonstrou ser um sintoma mais associado à Demência com Corpos de Lewy (DCL) e demências de tipo frontotemporal (FTD).

A análise temporal dos sintomas revelou-se essencial na diferenciação entre distúrbios com manifestações clínicas sobrepostas. Em doenças como a DCL e a PDD, o perfil temporal dos sintomas motoras e cognitivos foi utilizado para calcular a sobrevida média após o primeiro aparecimento de sintomas chave. Em doentes com DCL e PDD, foi observada uma sobrevida média significativamente mais curta em comparação com doentes diagnosticados com DA ou FTD, sugerindo uma agressividade distinta nestas formas de neurodegeneração.

Outro avanço relevante proporcionado por este estudo foi o desenvolvimento de subtipos clínicos baseados em análise temporal e clusters sintomáticos. O modelo permitiu identificar quatro subtipos distintos de demência: (1) demência tardia (predominantemente DA); (2) demência de início precoce (frequentemente FTD); (3) demência com envolvimento motor (como EM e variantes de PDD); e (4) demência com componente psiquiátrico marcante, como a presença de “comportamento compulsivo” e “humor deprimido”. Estes subtipos, formados com base em perfis sintomáticos e idade de manifestação, poderão sugerir que diferentes estruturas neuronais estão predominantemente envolvidas em cada subtipo.

Os resultados deste estudo apontam para a viabilidade de integrar trajetórias clínicas geradas por IA em sistemas hospitalares e de investigação. Contudo temos de ter ainda algumas precauções, como por exemplo o risco de viés introduzido por históricos médicos incompletos. Sem dúvida uma metodologia promissora e potencialmente útil da, daquela que devemos acompanhar durante este novo ano que começa agora.

1 Mekkes, N.J. et al. Identification of clinical disease trajectories in neurodegenerative disorders with natural language processing. Nat Med 30, 1143–1153 (2024).

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