Assistente Hospitalar de Ginecologia/Obstetrícia e PhD Student, FMUC
O impacto da inovação na deteção precoce do cancro do colo do útero
O cancro do colo do útero (CC) permanece como a quarta causa de morte por cancro na população feminina mundial.1 Na mulher portuguesa, apesar da diminuição da incidência e mortalidade nas últimas três décadas, a mortalidade apresenta ainda hoje os valores mais elevados comparativamente a outros países europeus.1,2
Aproximadamente 90% dos CC, têm subjacente uma infeção persistente pelo papilomavírus humano (HPV) de alto risco.3 No entanto, apesar da elevada prevalência da infeção por HPV, sabe-se que independentemente do genótipo, 70 a 90% das infecções são transitórias, sendo eliminadas ao fim de 12 a 24 meses. Deste modo, o desenvolvimento de doença invasiva, implica necessariamente a presença de outros cofatores, encontrando-se descritas associações nomeadamente com o tabagismo ou com imunossupressão.3
Atendendo ao conhecimento de mecanismos de carcinogênese, foi possível implementar várias medidas de prevenção, quer primária, como a vacinação4, quer secundária, por métodos de rastreio, ambas com elevado impacto na incidência da doença.
Atualmente o rastreio do CC é efetuado por pesquisa de HPV de alto risco, um método dotado de elevada sensibilidade e valor preditivo negativo, o que permitiu alargar os intervalos de rastreio e consequentemente, melhorar o custo-efetividade desta medida. No entanto, a maior parte dos testes HPV validados fornece apenas informação de presença ou ausência de vírus, não diferenciando as infecções transitórias das potencialmente transformadoras. Logo, esta baixa especificidade, levou à necessidade de métodos estratificadores de risco, que possibilitem identificar quem dentro daquelas com infeção HPV de alto risco tem realmente indicação para colposcopia. 5,6
O papel da inovação na melhoria da detecção precoce
Atualmente, a estratificação de risco têm sido efetuada por genotipagem parcial e citologia reflexa, o que implica a orientação para colposcopia de todas as mulheres com HPV tipo 16 e/ou 18, e com HPV outros (31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 56, 58, 59, 66 e 68) e citologia reflexa com alterações ASCUS ou superior.
De acordo com a literatura, a identificação de infecções por HPV-outros com citologia reflexa NILM ou de baixo grau (ASCUS e LSIL) são os achados mais frequentes em mulheres rastreadas.7 Na prática, o que verificamos nas unidades, é que grande parte destas não apresentam lesões ou quando presentes, não implicam tratamento imediato. Logo, a investigação por biomarcadores, que possibilitem uma estratificação de risco com maior acuidade é, essencial. Neste contexto, muito tem sido estudado, tendo surgido alternativas à citologia reflexa, tais como, marcadores de metilação e marcadores imunocitoquímicos. Os achados têm sido consensuais, demonstrando elevada especificidade e valor preditivo, tendo por isso elevado potencial na redução da referenciação para as unidades de colposcopia, possibilitando uma otimização de recursos, com elevado impacto não só nos custos de saúde, como também na vida destas mulheres.
Uma das alternativas mais estudadas, e inclusivé já aprovada pela FDA (U.S Food and Drug Admnistration), é a estratificação de risco por dupla marcação imunocitoquímica que deteta a presença simultânea das proteínas p16 (marcador de inativação da função de supressão tumoral da pRb, mediada por E7) e Ki-67 (marcador de proliferação), indicando a presença de desregulação do ciclo celular, uma vez que em situações fisiológicas a presença de ambas é mutuamente excluída.8
A experiência no CHUC
A Unidade Local de Saúde de Coimbra presta serviço ao programa do rastreio do cancro do colo do útero, funcionando como centro de testagem das amostras colhidas nos cuidados de Saúde Primários e como unidade de patologia do trato genital inferior, realizando colposcopias para as mulheres com rastreio positivo e alterações citológicas, e também tratamento excisional quando detectada lesão precursora. Nesta unidade, desde 2019, todas as mulheres HPV positivas foram triadas com citologia em meio líquido e também testadas com citologia com dupla marcação imunocitoquímica com p16/Ki67 (DM). A ULS Coimbra mantém uma base de dados com os resultados dos diferentes testes realizados, o que permitiu realizar uma análise retrospectiva de julho de 2019 a maio de 2023.9
De um total de 1.028 mulheres HPV-positivas, 71.9% foram negativas para a dupla marcação imunocitoquímica, e que sobe para 78.1% para mulheres positivas para os tipos de alto risco que não o 16 e o 18 (outros 12 HPV-AR). Por outro lado, a maioria das mulheres com dupla marcação negativa apresentavam citologia negativa (70,7%) e 29,3% destas tinham uma citologia ASC-US, sendo que não se encontraram citologias de alto grau no grupo com dupla-marcação negativa e positividade para outros 12 HPV-AR.
Assim, caso a positividade com DM fosse o critério de referenciação para colposcopia em vez da citologia alterada (ASC-US ou superior) em mulheres com teste positivo para outros 12 HPV-AR, seriam necessários cerca de metade do número de exames colposcópicos. Por outro lado, se o intervalo de seguimento para mulheres positivas para outros 12 HPV-AR com dupla marcação negativa tivesse sido estendido de 1 para 3 anos, 799 consultas, 799 testes de HPV e 277 colposcopias teriam sido evitadas neste coorte, com um risco de desenvolvimento de lesões de alto grau de 2,2%.9 É indubitável que se estes números fossem extrapolados para a realidade do programa nacional, existiria o potencial para uma importante optimização dos recursos de Saúde Pública.
Em conclusão: O rastreio do cancro do colo do útero, possibilita a identificação e tratamento de lesões pré-neoplásicas e o diagnóstico precoce de doença maligna, sendo uma medida dotada de elevado impacto populacional. A procura e desenvolvimento incessante por novas técnicas e métodos de estratificação, tem possibilitado a prática de uma medicina centrada no doente, cumprindo os princípios éticos da beneficência e o “primum non nocere”. Por fim, procuramos desta forma, alcançar o objetivo mundial de um limiar de 4 casos de CC/ 100.000 mulheres-ano, eliminando um dos maiores problemas de saúde pública, a nível global.10
BIBLIOGRAFIA
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