O Fluxo de Informação na Era covid-19. Não Será Demasiado Rápido?…
Médico Oftalmologista Director Geral da InfoCiência

O Fluxo de Informação na Era covid-19. Não Será Demasiado Rápido?…

Deixemos, por agora, o significado e a dimensão desta pandemia. 

Deixemos, por agora, as medidas adoptadas, a sua racionalidade, os algoritmos que as desenharam, o seu calendário, a sua abrangência, o seu impacto nas outras doenças, na economia e nas sociedades.

No final, que unanimemente desejamos para breve, far-se-á o balanço e perceber-se-á se as respostas foram proporcionais e se os fins justificaram os meios.

O centro desta minha reflexão é outro: informação científica, a sua revisão, a sua avaliação crítica, a sua publicação ao fim de poucos dias ou semanas em jornais de referência, o seu acesso totalmente liberalizado, sem barreiras e sem filtros. 

Sem barreiras: excelente.

Sem filtros: hum….

Vejamos alguns números de publicações sobre esta infecção até ao dia 31 de Março:

  • Journal of the American Medical Association (JAMA): 158
  • New England Journal of Medicine (NEJM): 48
  • The Lancet – 242
  • Pubmed – 2067

A Pubmed é uma base de dados integrada na U.S. National Library of Medicine e compreende mais de 30 milhões de citações de literatura biomédica da MEDLINE, jornais científicos e livros online.

Já me referi no passado aos riscos que a internet trouxe para o mundo da informação sobre saúde (e para toda a informação em geral). O acesso imediato, a facilidade de publicação, a total ausência de controlo e de mecanismos de revisão, tudo isto permite que nos cheguem informações desactualizadas, erradas, deturpadas e potencialmente prejudiciais. E isto ocorre tanto por ingenuidade como por ignorância ou maldade. 

Para o público leigo é muito difícil distinguir a verdade da mentira e cria-se uma falsa noção de saber que dificulta o trabalho dos profissionais da saúde, ao verem as suas opções criticadas, debatidas ou até rebatidas.

Como tudo na vida, essa enorme fluxo de informação tem um lado muito positivo, aumentando a literacia em saúde, promovendo estilos saudáveis de vida, tornando cada um de nós um parceiro efectivo na promoção da saúde e no combate à doença.

Mas a desinformação é enorme, é crescente e é muito difícil de combater…

Os jornais científicos de referência, como os que citei, entre tantos outros, são um dos pilares que sustentam o edifício científico e que permitem aos profissionais da saúde obterem informação previamente “digerida”, revista e, se necessário, corrigida antes de chegar às nossas mãos, sendo, por isso, uma ferramenta fiável para apoiar os nossos diagnósticos e opções terapêuticas, para melhor compreendermos a fisiologia da normalidade e a fisiopatologia das doenças e, no fundo, para fazer de nós profissionais mais competentes.

Face à presente pandemia, todos estes jornais, num gesto de enorme generosidade, solidariedade e apoio criaram áreas específicas para recolha de informação sobre a covid-19, de acesso livre e, através de um processo de fast-track approval, semelhante aos desencadeados para a investigação, desenvolvimento e comercialização de medicamentos considerados vitais (como ocorreu para a infecção pelo VIH), acolheram nessas áreas trabalhos de natureza epidemiológica, microbiológica, clínica, terapêutica, imunológica, de opinião ou de ensaio sem a devida ponderação e tempo que o normal processo de revisão implica e que pode chegar a meses ou anos. 

O processo de revisão passou agora a ocorrer não antes mas depois da publicação, sob a forma de comentários publicados na mesma revista ou nas redes sociais, como se verifica com frequência através do Twitter. Os leitores tornam-se, assim, revisores. 

Ou seja, passou-se de uma fase de preprints, que apenas eram publicados após revisão por pares, para uma fase em que esses preprints passaram a adquirir o estatuto de publicação final, de modo a dar resposta a esta sede de informação sobre um agente mal conhecido e mal caracterizado.

De facto, os preprints oferecem uma comunicação mais veloz, mais extensa e mais eficaz, sendo numa segunda fase revistos pelos próprios leitores.  

A grande questão, ainda por responder, é se este modelo de publicação pré-revisão se associa ou não a afirmações erróneas, a um risco mais elevado de enviesamento da verdade e à consequente deturpação dos algoritmos adoptados.

Sendo tudo isto tão recente, a resposta a estas dúvidas ainda não existe mas merece ser explorada e aprofundada.

Bem sabemos que o tempo aqui urge e contabiliza-se não em segundos mas em vidas. À luz desse facto tudo parece fazer sentido, mas importa nunca perder a noção de que, como em tudo o resto, a pressa aumenta o risco de errar. Os provérbios dedicados a essa verdade incontestável são inúmeros…

Aceitemos, por isso, a urgência dos tempos que vivemos, concordemos que a ciência se tem de munir de informação à velocidade da luz mas nunca percamos o nosso sentido crítico, a nossa capacidade de avaliação e o nosso bom senso.

Que o alarme social não se traduza em alarme editorial e que a informação que nos chega e que nos guia continue a ser um pilar, um farol, uma fonte de certeza e de verdade. 

Caso contrário, de pouco servirá…

 

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