30 Jan, 2025

“Não existe um tratamento para a dor que seja igual para todos os doentes”

“Medicina à Medida” é a temática central do Congresso ASTOR 2025 - 32º Congresso de Medicina da Dor. Elsa Verdasca, presidente da ASTOR, fala sobre a abordagem individualizada da dor, que é a que faz cada vez mais sentido em Medicina.

Porquê a temática “Medicina à Medida” no Congresso da dor ASTOR 2025?

Geneticamente, temos cada vez mais a noção de que somos diferentes em termos de bioquímica cerebral, de reação a fármacos, entre outros aspetos. Com esta temática central, basicamente, assume-se que não existe um tratamento para a dor que seja igual para todos os doentes. Podem ser disponibilizados fármacos e protocolos, mas é sempre preciso ter em foco uma Medicina que seja personalizada, individualizada.

 

Que desafios estão inerentes à Medicina Personalizada?

Antes de mais, implica uma gestão adequada, individualizada, dos fármacos, mas não só. Mesmo em técnicas não farmacológicas, é preciso ter em atenção as necessidades e as especificidades do doente. Por exemplo, se a minha doente não gostar de água, não vou indicar-lhe hidroterapia. Posso optar, antes, por Pilates. Se uma pessoa tem fobia de agulhas, não vou fazer uma infiltração ou bloqueio do nervo, vou optar por tratamentos transdérmicos. Mesmo em relação à consulta de seguimento, é preciso saber se o doente prefere teleconsulta ou presencial, porque, muitos, em idade ativa e a viverem longe do hospital, podem ter mais dificuldades na deslocação. E, inevitavelmente, é preciso perceber se existem necessidades psicológicas, que exijam psicoterapia, ou, musicoterapia, por exemplo.

“… é fundamental existir sempre um elo de ligação nos cuidados de saúde primários”

Para que a Medicina seja de facto personalizada, devem existir mais centros multidisciplinares de dor?

Sim, é importante que haja esse tipo de centros, com profissionais de diversas áreas de conhecimento. Nesses centros conseguem obter-se melhores resultados, face também à oferta de medidas farmacológicas e não farmacológicas. Contudo, nem todos os hospitais têm condições para tal, nomeadamente por escassez de recursos humanos. Mas o ideal é ter-se, pelo menos, uma consulta de dor e uma unidade de dor.

  

O contacto com os cuidados de saúde primários também é considerado essencial no tratamento da dor, sobretudo da dor crónica. Com a expansão das unidades locais de saúde (ULS), tem sido mais fácil a articulação entre cuidados primários e hospitalares?

Em teoria, sim, as ULS permitem maior articulação. Mas, em termos práticos, ainda temos que limar várias arestas. Penso que é fundamental existir sempre um elo de ligação nos cuidados de saúde primários, ou seja, um médico que tem um particular interesse por esta área e que pode contactar com o hospital e orientar os colegas. Nas unidades de saúde familiar (USF), cerca de 40% dos doentes apresenta dor crónica. Além dessa comunicação, poder-se-ia também ter uma consulta dedicada à dor. Há outras formas de interação como consultoria ou uma linha telefónica direta, que permitiria, inclusive, falar com os especialistas hospitalares em situação de dúvida e evitar referenciações não necessárias.

Este ano, o Curso EcoASTORX tem como tema “Técnicas ablativas de Radiofrequência”. Qual a relevância destes procedimentos?

São técnicas que a equipa do Centro Multidisciplinar Dor (CMD) da ULS Almada-Seixal tem desenvolvido e que permitem controlar, de forma mais permanente, a dor em comparação com as infiltrações habituais. As técnicas ablativas de radiofrequência não vão destruir, mas adormecer o nervo durante mais tempo – 6 a 9 meses. Funcionam na base do calor e sem complicações a nível motor.

Este ano, o curso será essencialmente prático, havendo apenas uma pequena introdução teórica. Haverá oito bancas com ecógrafos, dedicadas a diferentes partes do corpo humano, onde se poderá ver com melhor precisão a localização dos nervos e onde se deve picar o doente. Neste caso contamos com o apoio de modelos humanos, que não serão, obviamente, picados. Uma das bancas ficará para algo mais prático, podendo experimentar-se a técnica em pernas de frango.

Cada um dos formandos tem, ainda, a possibilidade de poder passar 10 horas no CMD a ver a parte prática em doentes reais. Da parte da manhã, irão estar nos ecógrafos e, da parte da tarde, irão ao Bloco de Cirurgia de Ambulatório do Hospital Garcia de Orta.

“… ainda persiste, nalguns casos, uma subvalorização da dor, sobretudo nos idosos”

Uma das sessões “Dor no Caos” conta com a presença de um anestesiologista, de um psiquiatra e de uma realizadora de cinema. Porquê esta oradora fora da área da saúde?

Essa mesa é organizada pela Dr.ª Cristina Catana, psicóloga do CMD, que sempre apostou em pessoas ‘fora da caixa’. Já tivemos pianistas, pintores … A arte ajuda muito na Psicologia e na Psiquiatria. E porquê a ideia de caos? Porque a sensação que se tem é que o mundo vive, precisamente, num caos. Existe guerra, muita desorganização, as pessoas estão muito conflituosas, os problemas na Saúde, etc. Mas o caos pode ser percecionado como  desagregação, mas também como reorganização. O caos nem sempre é mau, há coisas boas que surgem daí, que despertam as pessoas a fazer melhor, a mudar.

 

Vai haver ainda espaço para outras terapias, como mindfulness e acupuntura médica. Na Dor tem sido fácil aceitar estas medidas não farmacológicas?

Sim, porque são terapias complementares (e não alternativas), isto é, existe reconhecimento e idoneidade. O mindfulness é importante na saúde mental e, no caso da acupuntura médica, estão demonstrados excelentes resultados na dor (e não só). O que pode ser mais ‘fora da caixa’ é a medicina integrativa, que é uma abordagem global do doente. As duas colegas são especialistas em Medicina Geral e Familiar e fizeram formação em medicina integrativa fora de Portugal, porque aqui ainda não é aceite como diferenciação médica. Na Alemanha, a medicina integrada é considerada uma vertente da Medicina Ocidental. No nosso país temos sempre alguma décalage nestes temas…

A dor crónica já é mais reconhecida como doença ou ainda existe algum estigma e subvalorização das queixas?

Ainda há um caminho a percorrer, mas estamos melhor do que há uns anos. Isso é percetível no elevado número de referenciações para unidades de dor ou centros multidisciplinares de dor. Mesmo assim, ainda persiste, nalguns casos, uma subvalorização da dor, sobretudo nos idosos. Mas não é verdade que viver com dor é normal ou que faz parte do envelhecimento.

 

Maria João Garcia

 

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