Internato médico: Entre a Excelência e o Calvário
João Rocha Neves, professor convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, especialista em Angiologia e Cirurgia Vascular, doutorado em ciências cardiovasculares pela FMUP. Hugo Ribeiro, professor convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, especialista em Medicina Geral e Familiar e competência em Medicina Paliativa, doutorado em Cuidados Paliativos pela FMUP.

Internato médico: Entre a Excelência e o Calvário

Num país de contrastes agudos, onde a esperança e o desespero muitas vezes dançam em par, o internato médico em Portugal exemplifica esta realidade com uma clareza cristalina. No cerne deste sistema, encontramos os internos – jovens médicos que são, indubitavelmente, dos melhores profissionais que este país tem para oferecer. A exigência da sua formação é tal, que, arriscamos dizer, poucos timoneiros deste país conseguem entender o valor acrescentado que representam.

Mas que futuro lhes reserva Portugal? Desde cedo, estes jovens não são tratados como promessas de futuro, e sim como ativos descartáveis. Estão totalmente expostos ao bullying, especialmente em especialidades onde a progressão depende crucialmente da aprovação e do ensino de um colega mais experiente. Esta relação hierárquica, que deveria ser pautada pelo respeito e pela mentoria, transforma-se, não raras vezes, num calvário de abuso de poder e exploração. Esta é uma realidade que nos entristece particularmente, cujas denúncias nos são feitas, geralmente em surdina, durante as inúmeras formações que temos desenvolvido nos últimos anos.

As tabelas de avaliação do internato médico são notoriamente inespecíficas e insuficientes, deixando estes jovens profissionais numa posição de vulnerabilidade extrema. Estas avaliações, que deveriam servir para orientar e melhorar, muitas vezes servem apenas para perpetuar um estado de incerteza e dependência.

E falemos de exploração – a palavra que se torna difícil de evitar quando se consideram as milhares de horas de trabalho que lhes são exigidas. Invoca-se frequentemente a nobre missão de salvar vidas como um escudo contra qualquer crítica, colocando estes médicos num dilema moral quase insuperável. Diz-se que devem sacrificar-se sem limites pela saúde dos outros, mas até onde pode ir este sacrifício sem que se torne desumano? Todos temos limites, ou não será assim?

Os salários, esses, permanecem num patamar que roça o insulto, considerando a carga de responsabilidades e a intensidade do trabalho. Em muitos casos, são os pais destes jovens médicos que acabam por subsidiar indiretamente o internato, suportando os custos de vida exorbitantes, exacerbados por uma pressão imobiliária voraz nos arredores dos hospitais.

Os internos encontram-se, assim, numa espécie de servidão moderna, aprisionados entre o dever ético e a sobrevivência pessoal.

É crucial falar de soluções. Estas não podem ser tímidas nem superficiais: exigem uma reforma estrutural, profunda e corajosa, capaz de reconfigurar um sistema que tem falhado.

Para começar, implementar canais de denúncias anónimas e um gabinete de apoio robusto para resposta célere é essencial. Os internos, muitas vezes, sentem-se isolados e vulneráveis, temerosos de represálias, caso falem. Um sistema eficiente e verdadeiramente confidencial que lide com as suas preocupações é o primeiro passo para uma mudança real.

A avaliação do internato médico precisa ser bilateral e rigorosa. O interno deve ter a oportunidade de avaliar o seu local de formação com a mesma seriedade com que é avaliado. Esta medida promove uma transparência e um compromisso mútuo com a excelência. De igual modo, consideramos imperativo que o presidente do colégio de especialidade não acumule funções como diretor de um serviço com internato. Quem vai avaliar o regulador se não houver separação clara de poderes?

A monitorização dos locais de internato deve ser ativa e contínua, com dados reais e públicos que abranjam tanto dimensões objetivas quanto subjetivas da formação e do ambiente de trabalho. Não podemos depender apenas de denúncias para agir; a vigilância, o escrutínio mútuo e a responsabilidade devem ser constantes e proativas.

As tabelas de avaliação, por sua vez, devem refletir o que de melhor se faz na Europa. Precisam ser claras, diretas, e realizadas de forma regular, planeando os internatos ao milímetro para evitar exploração e dependência intelectual. É crucial estabelecer focos de aprendizagem bem definidos, onde os internos sejam valorizados, não só pela sua capacidade científica e clínica, mas também por competências de comunicação e a habilidade de tratar eficazmente múltiplos doentes.

Além disso, é importante que os internos possam escolher uma percentagem de indicadores que reflitam as suas competências e interesses pessoais na avaliação, incentivando, assim, um desenvolvimento mais completo e personalizado.

A situação dos internos médicos em Portugal é, por muitos aspetos, paradoxal e injusta. Obrigados a investigar fora de horas, sem qualquer suporte estatístico ou institucional adequado, estes profissionais, que acreditamos serem a verdadeira força motriz do sistema de saúde e da qualidade da medicina, deparam-se ainda com a necessidade de financiar do próprio bolso a divulgação das suas descobertas científicas. Pagam para publicar em revistas científicas, inscrever-se em congressos e até mesmo para as viagens necessárias para apresentar os seus trabalhos.

Este modelo revela uma lacuna grave no sistema, que deveria apoiá-los e não explorá-los. Seria de esperar que a Ordem dos Médicos, como entidade representativa, e o próprio Ministério da Saúde, interviessem de forma mais ativa na criação de eventos científicos próprios, acessíveis financeiramente e com apoio logístico adequado, fomentando uma cultura de partilha e inovação científica, sem o peso financeiro que agora recai sobre os ombros de quem ainda se encontra em formação e sobre a sua família. Esta ausência de apoio, não só sobrecarrega os internos como questiona o compromisso das estruturas de governação médica com o progresso da medicina no país.

Estas soluções, se bem implementadas, poderiam transformar radicalmente a experiência do internato médico em Portugal. Com tais mudanças, poderíamos finalmente oferecer aos nossos médicos em formação o respeito, o apoio e as condições que merecem e que são essenciais para que possam, por sua vez, oferecer o melhor cuidado possível aos seus doentes – a todos nós. A reforma do internato médico não é apenas uma questão de justiça para com estes jovens profissionais, é uma necessidade imperiosa para a saúde de todos.

 

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