Entre a Cura e a Competição: A Toxicidade nas organizações – um contributo para a análise e soluções
João Rocha Neves, Professor convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, especialista em Angiologia e Cirurgia Vascular, doutorado em ciências cardiovasculares pela FMUP/Hugo Ribeiro, Professor convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, especialista em Medicina Geral e Familiar e competência em Medicina Paliativa, doutorado em Cuidados Paliativos pela FMUP

Entre a Cura e a Competição: A Toxicidade nas organizações – um contributo para a análise e soluções

Num mundo ideal, o ambiente de trabalho, seja nas corporações ou nos corredores dos hospitais, seria um local onde a colaboração e o bem-estar mútuo predominariam. No entanto, a realidade muitas vezes revela um cenário bem diferente: o da toxicidade e da competição desmedida que corroem as bases do respeito e da qualidade de vida no trabalho.

Numa análise crua e incontornável, o berço da competitividade tóxica encontra-se frequentemente nas instituições de ensino superior, onde o futuro das profissões é moldado sob uma pressão quase insustentável. Nas faculdades, especialmente aquelas de prestígio e alta demanda como as de Medicina, instila-se um espírito de competição acirrada desde o primeiro dia. A meritocracia é pregada como virtude suprema, onde as notas e o desempenho académico são os deuses a serem venerados, e os alunos são os fiéis em constante prova de fé. Este ambiente, que deveria incentivar a aprendizagem e a colaboração, transforma-se, muitas vezes, num campo de batalha onde cada ponto na média pode ser a diferença entre o sucesso e o esquecimento.

Contudo, a transição do ambiente académico para o mercado de trabalho revela frequentemente uma realidade desconcertante e perturbadora: o mérito, que outrora determinava o futuro dos mais brilhantes, muitas vezes dá lugar a uma rede de conexões e apadrinhamentos, a alianças invisíveis que visam promover uma seleção artificial e perseguir os mais dotados, tentando que se sintam isolados. “É o sistema!”, dizem-nos. Esta distorção não só desmoraliza aqueles que sinceramente jogaram e jogam pelas regras do jogo meritocrático, mas também perpetua um ciclo de competição tóxica, onde as regras mudam conforme a conveniência de quem não vence nem se destaca com o “jogo limpo”.

A Toxicidade no Middle Management

No cerne das organizações, a toxicidade frequentemente palpita nas sombras. Cria-se a ideia de que a estratégia das organizações e a ciência devem ser democráticas. E no jogo de opiniões, à perseguição dos que lutam pela integridade do saber e das profissões, junta-se o silêncio conivente da maioria diferenciada, que “não quer problemas”. Criam-se “alianças de mediocridade”, com o notório objetivo de impedir que os melhores se destaquem, por via do seu desgaste covarde, habitualmente executado de forma contínua em sussurros privados ou em afrontas previamente planeadas.

Esta dinâmica ainda é mais prevalente em organizações fortemente hierarquizadas, onde a comunicação top-down impede que a realidade das bases mais qualificadas alcance o topo da pirâmide corporativa. Em tal ambiente, a competição tóxica e o bullying não apenas são permitidos, mas, inadvertidamente, incentivados.

No final, uns são vistos pelos sucessos dos outros, mas não contribuem para a garantia e melhoria desse mesmo sucesso, muito menos estão junto das equipas nos momentos de fracasso, gerando um ciclo vicioso de comportamentos tóxicos, onde a culpa é sempre transferida e nunca assumida.

Competição Tóxica na Medicina

Na Medicina, a competição tóxica assume um papel ainda mais crítico. Médicos e outros profissionais de saúde enfrentam pressões desmedidas, muitas vezes à custa da colaboração necessária para um cuidado ao doente seguro e eficaz. Este ambiente pode levar ao undermining, frequentemente subtil, onde profissionais diminuem os esforços e sucessos dos seus colegas para melhorar a própria imagem. Todos estes sintomas são indicativos de uma cultura organizacional enferma, onde a toxicidade é tanto sintoma quanto doença.

Promovendo uma Cultura de Speak Up e avaliação integral

Para enfrentar estas mazelas, é essencial promover uma cultura de speak up, onde todos na organização, independentemente do nível hierárquico, sintam-se seguros e incentivados a compartilhar as suas preocupações e feedbacks. A liderança deve estar na vanguarda deste movimento, exemplificando a abertura e a honestidade em todas as suas ações e comunicações, abraçando a avaliação a 360 graus.

Contudo, este modelo não é apenas unidireccional. Até porque uma organização orientada para resultados não pode ser um sistema democrático. Os melhores, os mais qualificados, os mais preparados, os mais diferenciados, têm que decidir, e têm que assumir as suas responsabilidades.

Para sabermos quem são os melhores, todos temos que ser avaliados, mas verdadeiramente avaliados! Um método de avaliação de desempenho no qual um funcionário é avaliado em diversas frentes e por diversas fontes, incluindo gestores, colegas, subordinados e, às vezes, doentes ou clientes, fornecendo uma visão ampla e diversificada do seu comportamento e competências no ambiente de trabalho. Hoje, é ainda possível avaliar se a prática médica é a mais adequada perante o que está preconizado em cenários diferentes.

Liderança e Sucesso Colaborativo

A verdadeira liderança não se ergue em pedestais isolados, mas mistura-se nas trincheiras do dia a dia de trabalho, procurando não somente o sucesso próprio, mas o sucesso compartilhado. Líderes eficazes não são os que se destacam pelos seus títulos, mas os que arregaçam as mangas e, junto das suas equipas, removem obstáculos, literal e figurativamente, abrindo espaço para o novo. São avaliados, mas também avaliam. Ouvem as opiniões de todos os colaboradores, mas decidem. A liderança eficaz também está sujeita a maior desgaste. É por esse motivo que deve estar limitada no tempo. Para que se cumpra este cenário, deve ser promovida uma cultura de rotatividade.

Treino e Desenvolvimento de Líderes e de Profissionais

É tão imperativo que as organizações invistam em programas de formação que ensinem habilidades de liderança, como programas que invistam no desenvolvimento das competências pessoais dos que fazem parte das equipas. Não basta termos líderes cheios de competências quando temos profissionais, por poucos que sejam, que tenham comportamentos tóxicos sistemáticos. Estes programas devem focar-se em comunicação eficaz, resolução de conflitos e promoção de um ambiente de trabalho colaborativo e respeitador.

Além disso, as instituições devem repensar as suas métricas de sucesso. Em vez de apenas valorizar os resultados coletivos quantitativos, é crucial medir o sucesso individual e também pelo impacto positivo no bem-estar dos membros da equipa e dos doentes. Este reencontrar da vocação poderia mitigar a competição desmedida e incentivar uma cultura mais colaborativa.

Mecanismos de Apoio Psicológico

Introduzir e manter serviços de apoio psicológico acessíveis é outra estratégia vital. Permitir que os trabalhadores discutam e superem os desafios emocionais e psicológicos relacionados ao trabalho pode promover uma saúde mental robusta, essencial para combater a toxicidade.

Conclusão

A luta contra a toxicidade no ambiente de trabalho e a competição desmedida na medicina é complexa e desafiadora. No entanto, é uma batalha que deve ser travada com tenacidade e perseverança. As organizações devem esforçar-se para ser mais do que meros lugares de trabalho; elas devem aspirar a ser espaços onde as pessoas não apenas executem as suas funções, mas onde possam também crescer, colaborar e prosperar num ambiente saudável e respeitador. Afinal, a verdadeira medida do sucesso não está apenas nos resultados alcançados, mas no caminho percorrido para obtê-los.

 

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