9 Dez, 2021

Entrevista ao presidente do IPO-Lisboa. “Com as saídas de profissionais, não conseguimos aumentar a capacidade de resposta”

Em entrevista exclusiva ao SaúdeOnline, o oncologista João Oliveira, que dirige o IPO de Lisboa há três anos, admite a dificuldade em recrutar profissionais para colmatar as saídas e pede que o SNS se torne numa prioridade nacional face “à proliferação dos privados”.

O IPO de Lisboa recebe um quarto dos doentes com cancro da região de LVT (cerca de 14 mil novos doentes por ano). Pode garantir que cada um destes doentes tem a resposta adequada por parte do IPO?

Sim, o IPO continua a dar a resposta adequada às necessidades das pessoas. Há uma ligação direta entre as necessidades dos doentes e os meios que colocamos à disposição.

A saída de profissionais, que se intensificou com o fim do estado de emergência, está a afetar a resposta dada pelo IPO?

O IPO precisa de aumentar a sua capacidade de resposta e, com as saídas de profissionais que se têm verificado, não conseguimos fazê-lo. Se compararmos o número de profissionais que tínhamos antes com o que temos agora, esse número é sensivelmente o mesmo – contudo, tivemos de recrutar pessoas mais jovens, cuja integração exige a atenção dos mais velhos,  diminuindo transitoriamente a capacidade de resposta. Mesmo que o número total de doentes não aumente, nós precisamos de aumentar a nossa capacidade porque, atualmente, na Oncologia, todos os dias há novas formas de diagnosticar e de tratar e por isso mais procedimentos para cada doente.

No nosso plano de atividade, esperávamos contar, no final de 2021, com mais 360 profissionais em relação a 2020. Estamos longe de alcançar esse objetivo.

 

“O IPO precisa de aumentar a sua capacidade de resposta e, com as saídas de profissionais, não consegue fazê-lo”

Quais as áreas mais carenciadas no IPO de Lisboa?

A área mais carenciada é dos enfermeiros. Temos também falta de técnicos superiores e de médicos de algumas especialidades. O que se passa no IPO não é diferente do que se passa na maior parte das instituições do SNS. Temos assistido, em Portugal, a uma diminuição das remunerações reais dos profissionais do SNS, ao longo dos últimos anos. No sul, particularmente em Lisboa, onde têm proliferado muitos hospitais privados, a competição do público com o privado é muito notória, sendo que o SNS tem dificuldade em recrutar profissionais dentro dos limites remuneratórios.. Acontece sobretudo ao nível dos quadros técnicos mais diferenciados, atraídos com melhores remunerações pelos privados. Isto é preocupante, pois a retenção de quadros para  assegurar os aspetos mais diferenciados dos cuidados de saúde, deveria ser uma característica do SNS.

Contudo, a dificuldade em recrutar pessoal sente-se não só na área clínica, mas em qualquer das áreas que são indispensáveis ao funcionamento do hospital (técnicos diversos, informáticos, engenheiros, profissionais de recursos humanos, etc).

O que é preciso mudar para além da questão remuneratória para conseguir atrair profissionais? Continua a ser necessário obter uma série de autorizações a nível central para fazer uma contratação?

Para fazer novas contratações, são de facto necessárias autorizações dos ministérios da Saúde e das Finanças. Mas, no meu entendimento, o principal problema está a montante, isto é, nas opções económicas sobre a importância que se quer dar ao SNS versus os serviços privados. Tem de haver uma orientação clara de que o SNS é uma prioridade nacional. O SNS tem de estar dotado de todas as condições e não dependente de outros prestadores.

Se a opção for facilitar a proliferação dos privados, obrigando o SNS a externalizar prestações de serviços clínicos, a tendência será para que se apliquem aos cidadãos os  atos mais lucrativos, que não forçosamente os mais úteis ou mais integrados e coerentes relativamente à globalidade dos cuidados de que cada doente necessita.

 

“Continuamos com atrasos e demoras nos tratamentos”

Continua a pensar que o SNS se está a transformar “numa plataforma de transferência de verbas para os privados”, como disse há dois anos, numa entrevista? Como se inverte essa situação?

Parece-me não haver dúvidas de que a dependência do SNS relativamente a prestadores privados se tem intensificado, reforçando essa transformação.    A este propósito, julgo que vale a pena olhar para o que aconteceu em Inglaterra, com um serviço público de saúde organizado e financiado de forma semelhante ao nosso, em que, a determinada altura, se começou a facilitar ou mesmo incentivar a externalização de cuidados – que poderiam ser prestados por operadores privados de saúde. Isto teve repercussões sobre a qualidade e a adequação dos cuidados.

Como é que encara a cada vez maior aposta dos grupos de saúde privados na área da oncologia? É um sinal de que o SNS é visto por cada vez mais portugueses como um sistema que não consegue dar uma resposta eficaz e atempada?

Não. Essa aposta tem a ver com o alto valor acrescentado de muitas tecnologias e procedimentos na área da oncologia. Sendo indiscutíveis os benefícios para a vida de muitos doentes, o problema é que existe frequentemente uma dissociação entre os cuidados com maior valor comercial, que são prestados pelos privados, e os cuidados de que os doentes precisam.

Qual foi a dimensão da quebra da atividade assistencial durante a pandemia no IPO de Lisboa?

Tivemos uma quebra da atividade transitória entre abril e maio do ano passado. Recebemos menos doentes nesse período e registámos mais baixas de profissionais que estiveram infetados com SARS-CoV-2 ou de quarentena. De uma forma geral, ao fim de todos estes meses, a nossa atividade assistencial manteve-se aos níveis anteriores e nalguns casos até aumentámos.

Não se pode comparar o IPO de Lisboa a um hospital geral. Nós recebemos os doentes mais graves e mais difíceis de tratar. E por isso, as características da referenciação para o IPO são pouco influenciáveis por alterações relacionadas com a pandemia.

 

“Os grandes progressos no conhecimento do cancro não correspondem ainda a sucessos terapêuticos da mesma magnitude”

No entanto, sentiu-se uma diminuição da referenciação para o IPO? Como estão as listas de espera?

As listas de espera cirúrgica diminuíram, também porque conseguimos aumentar a atividade nessa área. Temos um bloco operatório renovado e aumentado. Mesmo assim, continuamos com atrasos e demoras nos tratamentos.

O IPO já se depara neste momento com casos mais graves de doença oncológica, em resultado da diminuição dos diagnósticos e da referenciação resultantes da pandemia?

Temos doentes cada vez mais graves mas ainda não é possível quantificar essa realidade. É preciso que decorra mais tempo, para que se possam analisar tendências na epidemiologia do cancro. É importante não esquecer que as dificuldades no tratamento do cancro dependem não só da gravidade da doença mas também de condições gerais. Por exemplo, atualmente, a obesidade entre a população é maior – e sabemos que os doentes oncológicos obesos apresentam outras dificuldades no tratamento. Assim como o envelhecimento da população nos tem trazido doentes cada vez mais idosos e que são mais difíceis de tratar. A maior gravidade dos doentes era uma realidade já antes da pandemia.

O IPO de Lisboa tem conseguido acompanhar a evolução na área da oncologia? Não só ao nível de novos fármacos mas também de novos procedimentos cirúrgicos, mais conservadores, por exemplo.

O IPO tem todos os meios tecnológicos para tratar os doentes, com o que há de, reconhecidamente, mais eficaz e mais seguro no tratamento do cancro. Temos parcerias com outras instituições do SNS, mas conseguimos prestar todos os cuidados, até os mais sofisticados. Atualmente, em comparação com o que se fazia há dez ou cinco anos, é possível tratar cirurgicamente o cancro com maior preservação da função. Os avanços na cirurgia permitem, sem prescindir da radicalidade cirúrgica, realizar procedimentos menos mutilantes.

Em relação aos fármacos, houve grandes progressos na conceção de medicamentos para alvejarem alterações conhecidas ao nível molecular. Há uma tendência para se pensar que este avanço se traduziu sempre em melhoria dos resultados terapêuticos e isso não é sempre assim. Os grandes progressos no conhecimento do cancro não correspondem ainda a sucessos terapêuticos da mesma magnitude, apesar de o potencial ser grande. Tem-se criado um entusiasmo e uma expectativa que tem de ser gerida. Há até estudos recentes que compararam doentes tratados com fármacos dirigidos a determinados alvos moleculares e fármacos sem alvo específico, em que se constatou que a sobrevivência foi idêntica e a toxicidade não foi menor na terapêutica com alvo.

 

“Vivemos, neste momento, um período charneira na sobrevivência do serviço público de saúde”

Quais diria que são os grandes desafios que o IPO enfrenta atualmente?

Os desafios estão relacionados com o SNS de uma maneira geral. Vivemos, neste momento, um período charneira na sobrevivência do serviço público de saúde. Ou se tomam opções que reforcem as capacidades de pessoal do SNS ou então teremos de mudar a forma de funcionamento para dar preponderância aos prestadores privados. E essa não é a maneira mais eficaz nem mais eficiente de prestar cuidados à população.

O IPO de Lisboa tem projetos na calha para os próximos anos? A construção do novo edifício vai avançar?

Temos o projeto do novo edifício de ambulatório, que vem dar resposta aos desafios atuais de um grande centro como este, isto é, agilizar e reforçar o atendimento em ambulatório. Muitos dos procedimentos que realizavam de forma invasiva no passado, não requerem agora internamento, o que é uma vantagem para os doentes. O financiamento para este projeto estava previsto no Orçamento de Estado para 2021 e estamos a trabalhar de acordo com isso. Não há previsão para a inauguração ainda. Mas os próximos anos serão também de  potenciação da actividade do IPO de Lisboa pelos grandes investimentos nele ocorridos na última década: entre outras melhorias, passámos de um para sete aceleradores lineares; renovámos o bloco operatório, passando de cinco para nove salas de operações; modificámos todos os pisos de internamento, dando mais conforto aos doentes (apesar de ainda não conseguirmos um quarto a cada doente, como deveria ser); fizemos uma nova Unidade de Transplantação de Medula; instalámos um sistema de geração de água quente e gelada, com preocupações de eficiência energética. Do ponto de vista estrutural, o IPO de Lisboa está preparado para o futuro. Por outro lado, temos sempre presente o objectivo de  aprofundar o trabalho multidisciplinar no IPO, para dele retirar os maiores benefícios possíveis para os doentes e para o progresso do conhecimento científico, tanto básico como clínico.

 

“O novo edifício vai agilizar e reforçar o atendimento em ambulatório”

Que marca pessoal gostaria de deixar na instituição?

Não estou preocupado com isso, não há nada no IPO que se deva apenas a uma pessoa.

 

Nota: Esta entrevista teve lugar a 26 de novembro

TC/SO

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