Pandemia e saída de profissionais “desgastaram os serviços de Pneumologia”
Em entrevista, o diretor do Serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra alerta para um excesso de referenciação de doentes dos centros de saúde para as consultas de pneumologia em algumas áreas, numa altura em que os serviços hospitalares ainda recuperam dos efeitos da pandemia e enfrentam o burnout dos profissionais. Carlos Robalo Cordeiro defende uma gestão do doente respiratório à distância e em proximidade digital, com mais indicadores de desempenho na MGF para a área respiratória.
O também diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra foi eleito para um mandato de um ano à frente da European Respiratory Society. É a primeira vez que um português ocupa este prestigiado cargo.
O que significa para si liderar a European Respiratory Society (ERS)?
É um grande orgulho, até por ser a primeira vez que um português lidera esta sociedade. A ERS é uma sociedade com uma dimensão muito significativa, que tem uma abrangência e uma influência a nível global. Tem membros em 159 países. É também uma grande responsabilidade liderar a sociedade que marca a agenda científica respiratória a nível mundial. Para a pneumologia portuguesa, é também um bom sinal.
Que prioridades vão marcar o seu mandato [que se iniciou em setembro e terminará em setembro de 2023]?
A ERS tem uma estrutura robusta, de modo a promover a continuidade sem ruturas. É evidente que cada presidente tem a suas prioridades. No meu mandato, há dois aspetos de continuidade, relacionados com a chamada Internacional Respiratory Coalition, que é uma estrutura que pretende apoiar os países europeus para que estes desenvolvam planos nacionais de doenças respiratórias. Com a pandemia, identificaram-se falhas significativas na prevenção da doença respiratória.
Portugal é, neste aspeto, bom exemplo, já que tem uma estrutura organizada destinada a promover a saúde respiratória e que tem mostrado resultados significativos. Estamos também a desenvolver os Lung Facts, que vêm substituir o White Lung Book, com uma atualização permanente dos dados mais importantes da incidência, prevalência e impacto económico das principais doenças respiratórias a nível europeu. Com estes dados, o objetivo é identificarmos as principais necessidades e problemas, definindo-se os principais objetivos para cada país.
“Na European Respiratory Society, queremos aumentar a visibilidade da saúde respiratória”
Há, neste momento, uma falta de dados generalizada que limita o combate às doenças respiratórias?
Há, sobretudo, uma falta de suporte para a organização do combate às doenças respiratórias. E Portugal, nesse aspeto, até tem um bom desempenho. Se virmos as principais causas de mortalidade por doença a nível global, temos no top 5 três doenças respiratórias: a DPOC, o cancro do pulmão e as pneumonias.
Outro objetivo que vem de trás, e que está em continuidade, é o chamado Respiratory Channel – que é uma espécie de ‘Lungflix’-, isto é, uma plataforma informativa e formativa que tem como objetivo promover a proximidade com a comunidade da ERS, que tem mais 30 mil sócios por todo o mundo. Temos canais de divulgação de ciência e de educação muito fortes e um congresso anual, que decorre em setembro, com uma grande dimensão, com mais de 20 mil participantes em cada edição, mas falta continuidade. Entendemos que seria interessante desenvolver um canal profissional, onde possamos manter, ao longo do ano, informação sobre sessões relevantes do congresso anual, apresentação de guidelines que se tenham produzido, debates sobre papers significativos, juntamente com entrevistas e fóruns de discussão, entre outros temas.
A ERS tem também as suas publicações, como, por exemplo, a segunda revista em fator de impacto a nível respiratório, o European Respiratory Journal. Para além disto, temos três grandes pilares de ação: a ciência, a educação e a advocacy (a nossa forma de promover a saúde respiratória e o seu conhecimento). A ERS tem a sua sede principal em Lausanne, na Suíça, e uma sede política em Bruxelas, próximo da União Europeia, através da qual promovemos ações junto das estruturas de decisão da UE. Queremos aumentar a visibilidade da saúde respiratória, por exemplo, sobre a função respiratória, seu impacto e evolução, através da realização de espirometrias em idade jovem, para que a prevenção possa ser iniciada cedo. E temos outra sede em Sheffield, onde se produzem os órgãos editoriais e se encontra a Fundação Europeia do Pulmão (ELF).
“Cada vez mais os doentes crónicos devem ser geridos em proximidade”
Como avalia o combate que é feito, nas suas várias vertentes, às doenças respiratórias em Portugal? Que aspetos podemos melhorar?
Há sempre margem para melhorias. Há dois ou três aspetos que fazem com que a patologia respiratória tenha e vá continuar a ter uma prevalência muito significativa. Por um lado, o envelhecimento da população. Portugal é o país com maior aceleração do envelhecimento (22% da população portuguesa tem mais de 65 anos, a média europeia é de 20%). A idade avançada representa uma forte probabilidade de aparecimento de doenças como a DPOC, as pneumonias, o cancro do pulmão, as fibroses. Temos de olhar para o envelhecimento da população a par com as doenças crónicas, apostando nos rastreios e na prevenção, reduzindo o tabagismo e promovendo a vacinação também. Outro aspeto importante é a gestão do doente respiratório à distância mas em proximidade, ou seja, a gestão do doente no domicílio, de modo a manter os doentes monitorizados, podendo prestar, eventualmente, melhores cuidados de saúde. Cada vez mais os doentes crónicos devem ser geridos em com esta proximidade digital.
Mais a jusante, que mudanças poderiam ser feitas? É necessário um aumento da referenciação dos cuidados de saúde primários para consultas de pneumologia e, por um lado, deveria equacionar-se, na sua opinião, uma reorganização dos serviços de pneumologia no pós-covid?
A proximidade com a Medicina Geral e Familiar (MGF) é fundamental e tem sido essencial para o sucesso do Programa Nacional de Doenças Respiratórias, nomeadamente no aumento do diagnóstico da DPOC e da asma, com promoção de espirometrias e redução do internamento hospitalar destes doentes crónicos. Essa proximidade é muito importante.
O caminho passa por dar mais conhecimento aos especialistas em MGF para que possam tratar grande parte dos doentes respiratórios nos cuidados de saúde primários?
Também. Mas é também importante que se criem mais indicadores de desempenho na MGF para a área respiratória. Existem alguns, como por exemplo, a percentagem de doentes com doença obstrutiva (asma ou DPOC) com diagnóstico feito por espirometria, mas não são suficientes.
Quanto à referenciação, ela tem funcionado de uma forma avulsa na área respiratória. A organização dos canais de referenciação através da MGF é importante, mas tem de passar por um processo de triagem que atenda às necessidades primordiais. Há um excesso de referenciação em algumas áreas, como por exemplo na cessação tabágica. Muitos serviços de pneumologia têm enormes listas de espera para responder a doentes que poderiam ser mais apoiados nos cuidados de saúde primários.
“A referenciação tem funcionado de uma forma avulsa na área respiratória”
Há um problema de acesso dos utentes aos serviços de pneumologia dos hospitais do SNS?
Os serviços de pneumologia foram postos à prova com a pandemia e deram uma resposta notória, até superando as suas capacidades. Isso fragilizou bastante a pneumologia hospitalar e continua a ser motivo de desgaste e de situações de burnout entre profissionais de saúde, o que levou à saída de diversos médicos do SNS, numa dimensão a que não assistíamos anteriormente. Tudo isto desgastou a pneumologia, a que se junta o desgaste global do SNS – e que se nota naquilo que é o desastre das urgências hospitalares, que obrigam a uma carga assistencial tal que torna as urgências pouco atrativas para trabalhar.
Portugal é um dos países europeus onde mais se morre por pneumonia. O que está a falhar?
É uma discussão longa. A mortalidade por pneumonia em Portugal é superior à média europeia. Pode haver, desde logo, uma sobreclassificação nos hospitais, atribuindo a designação de pneumonia a agudizações de doenças respiratórias crónicas e que podem estar relacionadas, apenas, com infeções respiratórias. Os números podem ser justificados também com o envelhecimento da população, uma vez que, no internamento, temos cada vez mais pessoas idosas com comorbilidades, mais suscetíveis de desenvolverem uma pneumonia fatal. Também é importante, por outro lado, olhar para a vacinação contra a pneumonia como uma boa forma de prevenção e para a utilização criteriosa de antibióticos.
Considera que é necessária uma espécie de task-force ou um programa nacional para o Longo Covid, de modo a dar uma resposta mais organizada às pessoas que ficaram com sequelas relacionadas com a infeção por SARS-CoV-2?
Sim. Sabemos hoje que há três queixas principais: tosse, fadiga e dispneia. Mas há todo um processo de Longo Covid que pode acontecer, com caráter sistémico, a nível cardíaco, muscular, cognitivo, com sequelas que podem ser importantes – como miocardites – e que devem ser acompanhadas com proximidade. Devo dizer que o desenvolvimento de patologia pulmonar, designadamente fibrose depois da infeção, não parece estar a ter o impacto que inicialmente se previa. O problema é que nunca tivemos uma resposta organizada para os doentes com Longo Covid, com a devida referenciação.
“Em Portugal, nunca tivemos uma resposta organizada para os doentes com Longo Covid”
No que diz respeito ao cancro do pulmão, vários especialistas têm pedido a implementação de um rastreio de base populacional. Como é que Portugal deveria proceder à implementação desse rastreio?
O rastreio tem de ser sustentado na evidência. Temos ensaios clínicos de grande dimensão que demonstraram a eficácia do rastreio em populações bem definidas e com relevante custo-benefício. Está comprovado o potencial do rastreio, em populações selecionadas, na redução da mortalidade por cancro do pulmão. O rastreio não deverá ser feito a todas as pessoas que fumam, mas sim a quem tem cargas tabágicas elevadas, entre os 50 e os 75 anos. Há outros aspetos a considerar, como por exemplo pessoas com importante risco ocupacional associado. E finalmente a Comissão Europeia incluiu, no passado mês de setembro, o cancro do pulmão nas neoplasias passíveis de serem alvo de rastreio.
Qual o nível de conhecimento que já existe entre a comunidade médica e científica em relação ao impacto da poluição e das alterações climáticas nas doenças respiratórias?
A primeira ameaça à saúde global é, de acordo com a OMS, a poluição aérea e as alterações climáticas. O impacto destas ameaças na saúde respiratória é enorme e conhecido desde há muito tempo, principalmente em pessoas com patologia respiratória obstrutiva e idades extremas. Com o aquecimento global, assistimos ao agravamento de doenças respiratórias crónicas, a um aumento das exacerbações, relacionadas não apenas com temperaturas excessivas mas também com a existência de poeiras em suspensão, como nos recentes exemplos das areias do deserto, o que representa uma agressão significativa para o aparelho respiratório.
TC/SO
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