“A terapêutica modificadora da EM deve ser iniciada tão precocemente quanto possível”
No âmbito do Dia Mundial da Esclerose Múltipla (EM), que se assinala hoje, Carlos Capela, neurologista do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, fala sobre a importância das pessoas com EM se envolverem no seu tratamento, estando sensíveis para a necessidade de fazer a terapêutica adequada.
Segundo refere “tempo é cérebro”, pelo que a terapêutica modificadora da EM deve ser iniciada precocemente, “a fim de interferir com a história natural da doença, atrasando imenso a incapacidade neurológica”.
Enquanto neurologista, que segue doentes com EM, qual considera ser a importância de se assinalar este dia?
O Dia Mundial da Esclerose Múltipla é assinalado, todos os anos a 30 de maio. Esta comemoração visa juntar a comunidade global da EM, de forma a partilhar as suas histórias e sensibilizar o público para esta doença, bem como para as dificuldades que os doentes, famílias/cuidadores e equipas clínicas enfrentam no seu quotidiano.
Ao receberem um diagnóstico de EM alguns doentes entram em negação e recusam-se a iniciar a terapêutica, também por não terem ainda sintomas. Quais as consequências desta atitude?
A EM é uma doença neurológica que afeta o denominado sistema nervoso central (SNC), dos quais o órgão central é o cérebro. O cérebro controla a maioria das funções do corpo e, como todos os órgãos, possui alguma capacidade de reserva funcional. Ou seja, apesar da doença lesionar o cérebro este consegue compensar os defeitos resultantes deste dano e, assim, o doente pode não sentir sintomas que impactem a sua vida.
Com a evolução da doença e com o envelhecimento cerebral estes fenómenos de compensação tornam-se menos eficazes. Assim, é muito importante preservar o máximo de cérebro mais precocemente possível, num raciocínio semelhante ao que sucede nos acidentes vasculares cerebrais – “tempo é cérebro” – e iniciar a terapêutica modificadora da doença tão precocemente quanto possível.
Por último, as equipas clínicas que tratam a EM devem ser compostas por valências de saúde mental (como por exemplo, Psicologia e Psiquiatria), de forma a apoiarem o doente a lidar com os vários estádios emocionais, após um diagnóstico como o da EM.
“As equipas clínicas que tratam a EM devem ser compostas por valências de saúde mental, como Psicologia e Psiquiatria”
Então, a medicação deve ser iniciada mesmo sem haver ainda sintomas?
A EM é uma doença inflamatória e degenerativa. Muito se debate relativamente à componente degenerativa. A degeneração é primária (independente) ou secundária (dependente) da inflamação. Os dados mais recentes apontam que a degeneração é secundária à inflamação.
As terapêuticas modificadoras da doença funcionam muito bem na componente inflamatória, apesar de não a controlarem totalmente. Assim, quanto mais cedo iniciar as terapêuticas modificadoras da doença adequadas ao tipo e gravidade da doença, mais cedo se controla a componente inflamatória (apesar de não totalmente), atrasando a componente degenerativa da doença – é a denominada janela de oportunidade.
Além disto, com a evolução da tecnologia e o acesso mais fácil à ressonância magnética começou a identificar-se estádios muito precoces da doença (mesmo antes do primeiro evento clínico). De acordo com os raciocínios enunciados anteriormente (tempo é cérebro e janela de oportunidade), atualmente tratamos estes estádios muito precoces da doença e que possuam grande probabilidade de converter a doença definitiva.
As terapêuticas têm vindo a avançar ao longo do tempo. Em que consiste atualmente o tratamento para a EM?
Em termos gerais, o tratamento desta doença compreende a terapêutica dos surtos, terapêutica modificadora da doença (redução/interrupção da evolução ou história natural da EM) e terapêutica sintomática (para os sintomas e sequelas). O armamento terapêutico disponível nesta patologia tem crescido imenso ao longo destas últimas duas décadas. Atualmente, as terapêuticas modificadoras aprovadas no nosso país para a EM incluem medicamentos subcutâneos/intramusculares (formulações de interferão beta, acetato de glatirâmero, ofatumumab), orais (teriflunomida, fumarato de dimetilo, siponimod, ponesimod, fingolimod e cladribina) e endovenosos (natalizumab e ocrelizumab), utilizados de acordo com a atividade da doença.
Como avalia a eficácia destes tratamentos?
Estas terapêuticas modificadoras da doença são relativamente eficazes no controlo da inflamação chamada periférica que é a dominante nos estádios iniciais da doença.
De uma forma simplificada, existem dois grandes tipos de inflamação: a periférica, ou seja, iniciada/desenvolvida no sangue periférico e que depois invade o SNC, levando às lesões inflamatórias (e aos surtos) da doença; e a compartimentada ao SNC, ou seja, existem células imunes no SNC que vão perpetuar a inflamação dentro do órgão-alvo.
Atualmente, pensa-se que a inflamação compartimentada apesar de lenta é a grande responsável pela componente degenerativa da doença.
Em suma, as terapêuticas modificadoras da doença controlam de forma relativamente eficaz a componente inflamatória periférica e em menor grau a inflamação compartimentada (e a respetiva neurodegeneração secundária).
Contudo, quero deixar também sinais de esperança pois estão em desenvolvimento medicamentos que aparentemente atuam muito bem nesta inflamação compartimentada, como os inibidores da tirosina quinase de Bruton.
“As terapêuticas modificadoras da doença controlam de forma relativamente eficaz a componente inflamatória periférica e em menor grau a inflamação compartimentada”
Fazendo a terapêutica de acordo com indicação do médico, estes doentes conseguem viver com qualidade?
Como referi anteriormente, atualmente conseguimos influenciar grandemente a inflamação da EM e interferir com a história natural da doença, atrasando imenso a incapacidade neurológica. Brevemente, esperemos ter mais armas terapêuticas que atuam melhor na componente degenerativa, para, assim, melhorar ainda mais a qualidade de vida.
Além das terapêuticas modificadoras da doença, podemos aliviar os sintomas e melhorar a qualidade de vida, com terapêutica sintomática farmacológica e não farmacológica (reabilitação).
O que diria a um doente que não quer aderir à terapêutica?
A EM é uma doença neurológica crónica e nesse sentido é mais uma maratona do que um sprint, em que todas as nossas atuações deveriam importar ao longo do percurso.
Contudo, os nossos tratamentos farmacológicos atuais incidem sobretudo nos primeiros quilómetros da maratona, daí que, do ponto prático, a nossa atuação clínica assemelha-se mais a um sprint do que a uma maratona.
Por último, reforço que existe uma “janela de oportunidade” no tratamento da EM e que “tempo é cérebro”.
Texto: Sílvia Malheiro
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