SNS deve apostar no salário emocional como complemento do monetário
Médica Especialista em Medicina Geral e Familiar e Professora Auxiliar do Mestrado Integrado Medicina na Faculdade de Ciências da Vida - UMa

SNS deve apostar no salário emocional como complemento do monetário

Apesar do labirinto burocrático instalado, o nosso SNS tem profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares…) excelentes, com um conhecimento técnico-científico, acima da média e com uma resiliência e humanismo, indescritível. Esta mais-valia, que está em vias de extinção em muitos países, tem de ser “aproveitada” por quem tem o poder da gestão de recursos, sejam eles materiais ou humanos.

Os profissionais de saúde, à semelhança do que acontece com os profissionais de outras áreas, precisam de ter estabilidade, organização, equipamentos/material de trabalho adequado e possibilidade de articular e equilibrar a sua vida profissional com a sua vida pessoal. Por outro lado, precisam de sentir e saber que os seus doentes estão a ser bem tratados (medicamentos, exames adequados…), bem acomodados (nas enfermarias, nos SU…) e bem encaminhados (consultas/referenciações, exames complementares de diagnóstico, cirurgias…realizadas nos tempos adequados/aceitáveis).

De acordo com estudos internacionais, em países com uma prestação de cuidados de saúde primários, semelhantes ao nosso, a taxa de referenciação de doentes dos médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar (MGF) para outras especialidades ao nível dos cuidados de saúde secundários (sobretudo hospitais), ronda os 10%. O médico de família, é assim capaz, de gerir/tratar cerca de 90% dos problemas de saúde da população.

Quando não o consegue fazer, precisa de referenciar o doente para um colega de outra especialidade, contudo, esta referenciação não representa uma demissão de funções, nem tão pouco, um “despachar” do doente para o hospital. O médico de família tem de continuar a acompanhá-lo na sua consulta, uma vez que a opção “dar alta ao doente” não existe no âmbito da MGF.

Os meus doentes, utentes, pacientes ou clientes, como quiserem chamar, são o meu foco, a minha atenção, a minha prioridade no momento em que os estou a ouvir, a observar, a diagnosticar e tratar. Contudo, e não raras as vezes, os meus doentes ocupam o meu pensamento, mesmo após a consulta.

A incerteza de um diagnóstico, a preocupação pelo seu estado geral, o medo de uma eventual referenciação para o hospital (para realizar um exame ou ser observado por um colega especialista numa determinada área), demorar mais do que é suposto…deixa-me mentalmente ligada a esta pessoa, que é para mim, apenas, mais um doente…mas que sei que é a esposa, mãe, filha, avó, irmã…de alguém, e portanto, um ser único, essencial e insubstituível, na vida de outras pessoas.

Não há dinheiro que pague a tranquilização que o saber e sentir que o nosso doente está a ser bem cuidado/encaminhado traz aos profissionais de saúde!

Esta tranquilização pode ser encarada como um “salário emocional” para os médicos, enfermeiros e outros profissionais que prestam cuidados de saúde a quem mais precisa. Este salário contempla a realização profissional e pessoal; o bem-estar no local de trabalho; a liderança e inclusão em equipas de trabalho funcionais, motivadas e competentes; a comunicação clara e efetiva entre gestores e demais profissionais; um plano de carreira bem definido e funcionante e todo um conjunto de fatores que prezam pela saúde mental dos profissionais de saúde. O “salário emocional” como complemento do salário monetário dos profissionais de saúde deverá ser uma aposta do SNS a imediato / curto prazo.

A aplicação desta estratégia trará ganhos imensuráveis, com impacto nos cuidados de saúde prestados, na qualidade e segurança dos doentes, na arte de bem cuidar e na efetividade do nosso SNS.

 

Print Friendly, PDF & Email
ler mais
Print Friendly, PDF & Email
ler mais