Ser cobaia em concursos para recém-especialistas
USF As Gândras, ULS Coimbra

Ser cobaia em concursos para recém-especialistas

Os médicos que terminaram a sua formação especializada em março de 2024, depararam-se com uma mudança no concurso que iria definir o seu futuro profissional. Em vez de nacional, como esperado, a responsabilidade transitava para as Unidades Locais de Saúde. Assim sendo, cada uma realizaria o seu próprio concurso, com os seus próprios critérios e o seu próprio timing. Desde logo, houve muita incerteza e muitas perguntas sem resposta. Mas a perceção entre os recém-especialistas de MGF parecia consensual: “isto não vai correr bem”.

Na minha opinião, foram vários os aspetos que falharam e que demonstraram, acima de tudo, desorganização e falta de competências para um processo de recrutamento como este. Tivemos ULS que inicialmente não disponibilizaram a que unidades de saúde correspondiam as suas vagas. Outras, que depois de terminado o prazo para concurso, publicaram novo aviso de abertura, com mudanças de requisitos e de vagas disponíveis.

Os critérios de seleção eram por vezes subjetivos, levando a uma sensação de injustiça e de imprevisibilidade. Algumas ULS optaram pela realização de entrevistas, chegando a entrevistar cerca de 50 candidatos num dia. Além disso, tivemos concursos a considerar experiência profissional que, como recém-especialistas, não é sequer possível que tenhamos. Por outro lado, tivemos ULS a valorizar significativamente doutoramentos ou mestrados em áreas específicas, como se tratasse de um recrutamento de professores universitários.

No momento da escolha, alguns de nós tiveram que optar por uma vaga através de uma chamada telefónica, sem aviso prévio e sem tempo de reflexão. Outros tiveram que reorganizar-se de forma a estarem presentes em reuniões obrigatórias, sob pena de exclusão, para as quais foram convocados com menos de 24 horas de antecedência.

Esta fase é sempre marcada por ansiedade e expectativa, pela importância que tem no futuro profissional de um médico. Sinto que, este ano, a ansiedade foi exacerbada por concursos atrás de concursos, com requisitos e critérios distintos. Concursos esses que ocorreram muito desfasados no tempo, obrigando-nos a aceitar ou rejeitar uma vaga numa ULS, sem saber da possibilidade de escolha de uma vaga mais desejada noutra. E a expectativa transformou-se em desilusão e desesperança…

Em novembro, há ainda ULS a terminar o seu processo de recrutamento. Todo este atraso tem impacto nos candidatos, que veem o seu futuro (e o das suas famílias) adiado, pendente do local de colocação. Até lá, respondem às necessidades das ULS da sua formação, realizando atividades de especialista, mas com remuneração de interno. As incongruências e o arrastar deste processo transparecem desrespeito e desvalorização do nosso trabalho. Apesar da vontade de colaborar no SNS, muitos acabaram por optar por outros rumos, ingressar no setor privado ou até mudar de país, por estarem cansados, desanimados e precisarem de alguma definição do seu futuro.

Pelas razões enumeradas e muitas outras, a meu ver, este concurso foi um fracasso. Motivou instabilidade nas nossas vidas, no funcionamento das unidades de saúde e levou a que muitos utentes perdessem a possibilidade de ter um médico de família. Espero, sinceramente, que os médicos comecem a ser ouvidos e que não tenhamos mais colegas a ter que ser cobaias de modelos de concurso desajustados da realidade. Senão perdemos nós, mas perdem, sobretudo, os utentes.

 

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