“Os Cuidados Paliativos Pediátricos não se destinam apenas a crianças com cancro”

Quase 90% das crianças com doença avançada, em Portugal, não têm acesso a uma equipa de Cuidados Paliativos Pediátricos (CPP), segundo Cândida Cancelinha, médica coordenadora das Equipas de CPP do CHUC e vice-presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.

Quantas crianças necessitam de Cuidados Paliativos Pediátricos (CPP) em Portugal?

Estima-se que existam, em Portugal, cerca de 8 mil crianças e adolescentes com necessidade de apoio por equipas especializadas de CPP. A este número, multiplicam-se pais, irmãos, avós e outros familiares, que, diariamente, são envolvidos nos cuidados a estas crianças.

Quais as doenças mais frequentes que exigem estes cuidados? 

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, os CPP não se destinam apenas a crianças com cancro, mas envolvem muitas crianças com doenças neurológicas muito complexas (como a paralisia cerebral grave), doenças genéticas, metabólicas, cardíacas, renais, entre tantas outras. Podem, inclusive, começar a providenciar-se ainda durante a gravidez, quando existe o diagnóstico de uma malformação grave ou de uma situação ameaçadora da vida. Estima-se mesmo que cerca de 30% destas condições se iniciem no período durante a gravidez ou à volta do parto.

“São já vários os serviços de Pediatria que têm profissionais com motivação para constituir equipas, mas temos ainda importantes lacunas quer ao nível da formação prática quer, sobretudo, da alocação real de recursos e de tempo”

Existem cinco equipas em Portugal. São suficientes?

Segundo os dados mais recentes da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, existem apenas cinco equipas especializadas (nos grandes centros hospitalares e universitários do Porto, Coimbra e Lisboa) e três equipas generalistas (nos IPO do Porto e Lisboa e no H. Garcia de Orta), o que deixa a descoberto toda a região interior e sul de Portugal Continental e Insular.

São já vários os serviços de Pediatria que têm profissionais com motivação para constituir equipas, mas temos ainda importantes lacunas quer ao nível da formação prática quer, sobretudo, da alocação real de recursos e de tempo, para que estes profissionais possam exercer a sua atividade de forma estruturada. E esta falta de recursos estende-se também às equipas já reconhecidas que, incompreensivelmente, continuam a ter profissionais que trabalham em várias áreas em simultâneo.

Neste momento, são cada vez mais os profissionais motivados para trabalhar nesta área e com vontade de fazer formação. Mas é fundamental que os serviços estejam sensibilizados para esta necessidade e que tenham condições para ter recursos alocados. O que acontece em muitos deles é que o mesmo profissional tem que se desdobrar por diversos ramos de atividade, o que, impossibilita, muitas vezes, que tenha tempo de qualidade para trabalhar em CPP.

Bem sabemos que há défice de recursos um pouco por todo o lado, mas precisamos de olhar para estas equipas como equipas que também podem ter um papel importante na redução do consumo de recursos hospitalares (como internamentos e idas ao Serviço de Urgência) e, por isso, também terem impacto naquilo que é a dinâmica de cada serviço.

 

Quais os maiores desafios que os profissionais enfrentam nesta área a nível clínico, emocional e de carreira?

Ao contrário do que a maioria das pessoas pode pensar, trabalhar em CPP é tão desafiante quanto recompensador. Envolvendo crianças com doenças muito distintas, algumas delas ultra-raras, exige, naturalmente, uma atualização do ponto de vista científico permanente. Mas aqui não trabalhamos com a doença. Trabalhamos com a criança que tem uma doença e cada criança e cada família são uma fonte de ensinamentos para os profissionais.

Uma das competências exigidas a estas equipas é o treino em comunicação (sobretudo comunicação de más notícias e comunicação entre equipas), que deveria, aliás, ser estendido a qualquer profissional que lide com pessoas com doença crónica. Depois, sendo crianças que muitas vezes têm necessidades diversas (do ponto de vista de mobilidade, suporte respiratório, alimentar, terapias de substituição e outras terapias por vezes invasivas), a abordagem global a todas as necessidades e o estabelecimento de pontes com as várias especialidades, que podem estar envolvidas, ajudam a unificar um plano, que se quer individualizado para a criança e a família acompanhadas.

A possibilidade de acompanhamento em contexto domiciliário é outra das enormes mais-valias para qualquer profissional – em casa e nas escolas dos nossos meninos, nós temos acesso a uma dimensão da Medicina que não vem na maioria dos livros. E também nos permite estabelecer uma ligação que vai muito para além dos corredores dos hospitais. Quanto mais tempo temos para acompanhar cada criança, mais fácil se torna este caminho comum, maior é a confiança recíproca equipa-família e, mais importante, se torna celebrar todos os ganhos, mas, sobretudo, dar suporte em qualquer agravamento.

Logicamente, que as situações de maior exigência emocional para qualquer profissional são as situações de fim de vida, e nelas, cada profissional, de forma individual, mas também em equipa, precisa de construir o seu processo de luto e de crescimento interior. Há, ainda, muitos profissionais, que olham para esta fase da vida como uma fase de afastamento ou de fuga – pessoalmente, estes são os momentos em que, se souber que tudo o que estava ao alcance da minha equipa foi feito, mais realizada me sinto como profissional de CPP. Nenhuma mãe, nenhum pai pensa, algum dia, passar pela perda de um filho. Se assim tiver de ser, que o possa fazer acompanhado.

“As equipas de CPP não melhoram apenas a qualidade de vida de crianças e famílias; reduzem internamentos hospitalares, internamentos em unidades de cuidados intensivos e morte em contexto hospitalar”

Temos uma nova Ministra da Saúde. Que mensagem gostaria de deixar à Tutela?

A mensagem é muito simples. Se seria, hoje, inconcebível acordarmos com a notícia de uma criança com uma cardiopatia complexa que não tem acesso a equipa de Cardiologia Pediátrica, ou uma criança com um cancro não ter acesso a uma equipa de Oncologia, como podemos permitir que quase 90% das crianças com uma doença avançada, em Portugal, ainda não tenha acesso a uma equipa de CPP?

Como é que o nosso país continua a não querer refletir sobre respostas que possam colocar as necessidades da pessoa com doença crónica em primeiro lugar, com respostas adequadas em cada momento da sua trajetória, seja qual for o contexto em que se encontre? A literatura é muito clara: as equipas de CPP não melhoram apenas a qualidade de vida de crianças e famílias; reduzem internamentos hospitalares, internamentos em unidades de cuidados intensivos e morte em contexto hospitalar. E os programas de hospitalização domiciliária em Portugal continuam a privilegiar o doente agudo.

Numa fase em que precisamos tanto de reajustar os meios que temos às necessidades dos portugueses, não deve passar, também, por aqui, a reestruturação do nosso SNS? A Carta dos Direitos da Criança em Fim de vida enuncia, no seu ponto 10.º, que: “qualquer criança tem que ter acesso a equipas especializadas de CPP”. Em plena fase de comemoração do Dia Mundial da Criança, que resposta temos para o período da vida, provavelmente mais terrífico que qualquer pessoa pode enfrentar, sobretudo se não tiver acompanhamento especializado?

Maria João Garcia

 

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