10 Mar, 2022

Lesão Renal Aguda. “É crucial conhecermos as situações que conduzem à lesão renal”

A propósito do Dia Mundial do Rim (10 de março), o SaúdeOnline entrevistou o nefrologista Aníbal Ferreira sobre a lesão renal aguda. A etiologia desta doença é diversificada e a sua prevenção passa por reconhecer os quadros clínicos. “A manutenção de uma boa perfusão renal, de um débito plasmático renal efetivo, da hidratação do doente, bem como o tratamento dos principais fatores de risco e o compromisso do débito cardíaco são os passos-chave para otimizar a função renal e evitarmos o desenvolvimento de lesão renal aguda”.

 

O que se entende por lesão renal aguda (LRA) e qual a sua origem?

A lesão renal aguda é a patologia que atinge os rins, sendo balizada no tempo, regra geral, no espaço de uma semana. É possível identificar, de uma forma muito clara, as causas do seu surgimento e, na maioria dos casos, consegue-se documentar que a função renal já estava afetada previamente. Isto pode dever-se a uma perfusão do rim, a causas renais – como é o caso da insuficiência renal aguda infrarrenal – ou ainda a causas pós renais, como compressões, tumores, cálculos, onde temos uma deterioração rápida e com grande compromisso da função renal.

Há variantes como as lesões da função renal crónica sem diagnóstico prévio, que depois sofrem uma agudização, observáveis com muita frequência nos doentes mais idosos, diabéticos, com excesso de diuréticos ou até nos que praticam a automedicação, com uso de anti-inflamatórios não esteroides.

Quais as implicações que estas lesões podem ter no organismo a médio-longo prazo?

Quando as causas que levaram à insuficiência renal aguda não são tratadas e se mantêm no tempo, vão levar a uma lesão renal crónica, que é aquela que documenta há pelo menos três meses. Entre as duas existe a chamada doença renal rapidamente progressiva, na qual assistimos a uma deterioração progressiva da função renal relativamente rápida, mas não tão rápida como a insuficiência renal aguda por definição.

A título de exemplo, as infeções por covid-19 levaram a insuficiência renal aguda em muitos doentes, a que se associa um aumento muito significativo da mortalidade, sobretudo nos doentes que necessitaram de fazer diálise. Houve ainda outros pacientes que ficaram com quadros mantidos durante semanas ou meses, e que atingiram a doença renal crónica.

Como é que a LRA pode ser prevenida?

Acima de tudo, quer em casos de insuficiência renal aguda, quer de insuficiência renal crónica, ambas são passiveis de prevenção, sendo este um dos grandes objetivos, não só dos nefrologistas, como de toda a comunidade médica.  A manutenção de uma boa perfusão renal, de um débito plasmático renal efetivo para o rim, da hidratação do doente, tratamento dos fatores de risco principais que são a infeção e o compromisso do débito cardíaco são os passos que mais tomamos para otimizar a função renal e evitar o desenvolvimento de função renal aguda.

É crucial sabermos quais as situações que mais facilmente podem levar ao aparecimento de uma lesão renal, como por exemplo, quadros infeciosos – choque séptico, algumas infeções virais como a SARS-CoV-2, tal como já tinha acontecido há uns anos com a gripe A –, desidratação, excesso de fármacos nefrotóxicos. Muitos dos nossos doentes estão polimedicados e quando há associados anti-inflamatórios não esteroides é frequente vermos quadros de agravamento muito significativo da função renal em curtos espaços de tempo.

Sabemos que existem testes de avaliação precoce da LRA que facilitam a sua deteção antes dos primeiros sintomas. Tendo em conta os elevados custos hospitalares desta patologia, considera que se devia recorrer a estes testes de forma mais regular e sistemática?

São sobretudo avaliações a realizar-se em unidades hospitalares, regra geral em unidades de cuidados intensivos ou pelo menos intermédios, nos quais se tenta de alguma forma marcar os fatores de risco e antecipar as medidas que levam a um desenvolvimento da LRA.

Estes marcadores são, por isso, importantes não tanto para descobrir ou diagnosticar a insuficiência renal aguda, mas diria que para antecipar as medidas terapêuticas que podem fazer e fazem com que a insuficiência renal aguda não seja tão grave, tão prolongada e em que os doentes não tenham de recorrer a prótese dialítica – quer seja hemodiálise, quer seja diálise peritoneal. Isso é extramente importante, para além da redução óbvia do período em que os doentes estão internados em unidades diferenciadas.

Deste modo, estes marcadores precoces podem ajudar, num prazo de 12 a 24 horas, a uma antecipação da evolução do estado clínico do doente, uma otimização da abordagem terapêutica e, sobretudo, permitem que se evite com medidas intempestivas terapêuticas por vezes transformar alguns fatores de risco noutros em sentido oposto.

Qual a importância da terapêutica no controlo e reversão das lesões renais agudas?

Essa importância vai depender da etiologia pois, por exemplo, em casos de pós-transplante renal os doentes apresentam um quadro insuficiência renal aguda, porque recebem um órgão que esteve algumas horas numa solução gelada sem estar perfundido. Temos situações de sépsis e de choque sético no contexto de grandes cirurgias abdominais, em que obviamente o tratamento é apenas tentarmos salvar a vida do doente com taminas e fármacos vasoconstritores, sabendo ao fazermos isso prolongamos até o período de sofrimento do rim, mas é a única alternativa para salvar o doente e conseguir, do ponto de vista hemodinâmico, estabilizá-lo. Depois passamos para o tratamento.

É função dos nefrologistas e dos intensivistas priorizar, em cada momento, quais os aspetos mais importantes para salvar a vida do doente e, e, segundo lugar, salvar-lhe a função renal – mas acontece sempre por esta ordem e não o inverso.

Segundo dados da Ata Médica Portuguesa, em contexto hospitalar, a LRA ocorre em mais de 50% dos doentes no primeiro dia de internamento e está associada a um aumento de 10x nas taxas de mortalidade hospitalar. Que medidas podem ser tomadas de modo a contrariar estas estatísticas?

Mais uma vez, temos de olhar para estas estatísticas de uma forma crítica e bastante informada. Falar de insuficiência renal aguda a nível hospitalar é falar de uma realidade que todos reconhecemos que existe e, em muitos casos, será muito difícil reverter.

A insuficiência renal aguda resulta de fatores tão simples como desidratação, diarreias abundantes, uma diabetes descontrolada, um episódio sético sem hidratação correta. Portanto, nesses 50% dos doentes estamos a colocar um painel de doentes muito variado: desde insuficiências renais agudas muito suaves e totalmente reversíveis com uma correta hidratação ao fim de 6-12 horas, até insuficiências renais agudas muito graves, em que os doentes vão para os cuidados intensivos e chegam a ter uma mortalidade na ordem dos 30%. Por isso, o que podemos fazer para baixar estes números prende-se com um acompanhamento mais frequente e um diagnóstico mais precoce da doença renal crónica, porque em muitos dos doentes que assim são referidos como 50% de insuficiências renais agudas nos centros hospitalares, mais de metade resulta de doença renal crónica até então desconhecida.

Por outro lado, a população que tratamos hoje é muito mais investida por parte dos médicos e da sociedade, e ainda bem, por isso observamos um aumento da esperança média de vida. Infelizmente, a qualidade de vida não tem aumentado com a mesma velocidade, e passa por aqui a nossa atuação enquanto médicos: o grande passo que temos de dar é oferecer maior qualidade de vida aos nossos doentes crónicos, não tendo apenas doentes que vivem mais anos, mas que depois são mais dependentes e solitários.

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