Intermezzo tenebroso
Médico de família

Intermezzo tenebroso

O acaso reinava, soberano, e só se podia contar com o caos a determinar o destino do Homem.

Tom Sharpe in “A alternativa Wilt”

A decorrente epidemia do Covid 19 veio pôr em evidência, entre outras coisas, o deficit de prestígio da ciência no mundo de hoje (apesar das aparências em contrário) e das fragilidades do modelo sócio-político ocidental. 

Falsa ciência. Tivemos um Presidente da República dando o triste exemplo de contrariar as indicações técnicas da Direção Geral de Saúde, comentadores políticos a desvalorizarem a ameaça, à revelia dos alertas dos cientistas, e agentes económicos indignados com os meios de comunicação social, acusando-a de fomentarem o medo prejudicando a indústria turística. Políticos, agentes económicos, modeladores de opinião, que enxameiam os meios de comunicação social, e agentes económicos continuam a criar e adubar focos de falsa ciência à la carte das suas visões de curto alcance. Bem pior: vários médicos desvalorizaram, sem bases científicas, o risco duma pandemia como a atual. Aquando da gripe das aves acusaram a OMS de alarmismo, de se terem tomado medidas exageradas e inclusive lançaram suspeitas de ligações espúrias entre a OMS e a indústria farmacêutica.

Falência do ocidente. Neste momento torna-se indesmentível a falência da Europa (e dos EUA) para enfrentar a pandemia, comparada com o impressionante sucesso da China, Coreia do Sul e Japão. Desde a Segunda Guerra os europeus, se excetuarmos idosos com mais de 85 anos, não guardam memória de hecatombes. Com a exceção das guerras balcânicas, aliás limitadas, a Europa tem-se vindo a deparar com ataques terroristas (mas de escala bem inferior aos ocorridos no Médio Oriente e África, ou à violência endémica nas Américas Central e do Sul), crises económicas (bem mais suaves que as fomes em África), incêndios devastadores (mas menos catastróficos que os da Austrália ou Amazónia). Enfim, tudo apuros de magnitude bem menor que os que afligem o resto da humanidade. Nestas oito décadas a Europa acomodou-se à sua estabilidade e prosperidade. Para o cidadão comum calamidades de dimensão apocalíptica só mesmo em filmes paridos por Hollywood. O vírus veio a estilhaçar os alicerces de toda esta autoconfiança. Mas tardiamente, que graças aos resquícios da falsa sensação de imunidade, os povos e governos da Europa estão a ser lentos a responder à ameaça e a pôr de lado os seus atavismos.

Se nos dermos ao trabalho de analisar os relatórios que a OMS tem vindo a emitir desde o início da crise verificamos, sem margem para dúvidas, que China, Coreia e Japão (os três mais atingidos na vaga inicial) são os mais bem posicionados na luta contra a doença. Ao que parece o logos confuciano está mais bem equipado que o helénico-cristão para fazer face a ameaças deste calibre. A disciplina e espírito de sacrifício orientais superam o individualismo hedonista que nos carateriza. Poder-se-á especular que o modelo democrático-liberal, focado nos direitos e liberdades do individuo, será o menos mau de todos os sistemas político-sociais em tempos de bonança, tornando-se de todo desadequado em contextos de catástrofe. 

Preocupada em não perder a sua alma democrática, a Europa está a perder-se a si mesma e aos seus ideais, envolvida numa guerra total contra um inimigo implacável que não tolera rendições e com o qual não há negociação possível.

À laia de provocação termino com uma sugestão: para além de material e de profissionais de saúde experimentados, não seria de pedir à China que enviasse para a Europa algumas divisões do Exército de Libertação do Povo? (com bilhete de volta, claro está!).

 

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