30 Mai, 2022

Esclerose Múltipla: “O primeiro desafio nas formas progressivas é reconhecê-las”

Segundo a presidente do Grupo de Estudos de Esclerose Múltipla da SPMI, Maria José Sá, "Os principais desafios do diagnóstico ocorrem quando os sintomas são atípicos, ou a ressonância magnética mostra apenas lesões desmielinizantes isoladas ou pequena".

Foto: jornalista Luis Garcia, Esfera das Ideias

 

Em entrevista exclusiva ao SaúdeOnline, a presidente do Grupo de Estudos de Esclerose Múltipla (GEEM) da Sociedade Portuguesa de Neurologia (SPN), Maria José Sá, esclarece os principais desafios suscitados pela esclerose múltipla, nomeadamente “o maior talvez seja a ausência de medicamentos que promovam efetivamente a reparação celular e a remielinização”. A diretora do Serviço de Doenças Desmielinizantes do Hospital de S. João reforça ainda a necessidade de atuação no tratamento precoce.

 

Qual é a atual incidência da esclerose múltipla (EM) em Portugal e no Mundo?

A incidência da Esclerose Múltipla (EM) não é bem conhecida, há uma grande variabilidade na distribuição geográfica da doença no mundo e não existem registos nacionais dos doentes em muitos países, como acontece em Portugal. No entanto, os dados epidemiológicos referidos na última edição do Atlas de EM, publicado em 2020 pela Federação Internacional da EM, apontam para valores globais de 2,1 pessoas por cada 100 000 habitantes ao ano, tendo a Europa o valor de incidência mais elevado, de 6,8. Num estudo publicado em 2014 numa população de Lisboa foi estimada uma incidência de 3,16 pessoas por cada 100 mil habitantes ao ano.

Já os valores da prevalência têm sido melhor estudados, sendo já do conhecimento científico desde há muito tempo que a prevalência da EM aumenta em ambos os hemisférios, à medida que nos afastamos do equador. Por exemplo, na Europa Ocidental a prevalência é muito maior nos países nórdicos do que nos do Sul, com valores que vão, respetivamente de 200 para 70 casos por cada 100 mil habitantes. Em Portugal há alguns estudos de âmbito regional, sendo que o último aponta para 66,4 doentes por cada 100 mil habitantes, situando o nosso país numa região de média prevalência.

Mas o que mais importa é que o referido Atlas demonstrou que a prevalência da EM aumentou em todo o mundo, sendo atualmente o número global estimado de doentes de 2,8 milhões, o que corresponde a um valor cerca de 30% superior ao encontrado na versão prévia do Atlas, de 2013. Vários fatores podem explicar esta subida, como o diagnóstico mais precoce, o desenvolvimento do arsenal terapêutico modificador da doença e o aumento da esperança média de vida de um modo geral.

Como acontece noutras doenças autoimunes, a prevalência da EM é maior nas mulheres do que nos homens, em termos globais cerca de duas vezes maior, em países de maior prevalência o ratio chega a ser 4/1.

Quais os custos associados à EM em Portugal?

Os custos associados à EM abrangem muitas parcelas diferentes, já que se trata de uma doença crónica e progressiva, que afeta com frequência as pessoas no começo da sua vida pessoal e profissional, e que por isso tem um impacto socioeconómico multifacetado e longo. No estudo mais recente sobre o assunto (2017), implementado pela European Platform of MS Societies em 16 países europeus, incluindo Portugal, com o apoio das sociedades nacionais de EM, foi analisado o peso global da doença, com detalhe dos custos diretos (médicos, não-médicos, informais) e indiretos, ou seja, as perdas de produtividade, como as baixas e as reformas precoces por invalidez, entre outras.

Em Portugal verificou-se que os custos totais anuais aumentavam à medida que a incapacidade dos doentes progredia, com valores que mais do que duplicavam desde as fases iniciais (16 500€) até às fases mais avançadas (34 400€). No cálculo dos custos observou-se que os cuidados de saúde predominavam numa fase inicial, conquanto nas formas mais severas predominavam as parcelas referentes às perdas de produção e aos cuidados informais. A constatação de que quase metade dos doentes em idade laboral estavam reformados pela doença, foi também outro achado importante.

No paradigma do tratamento da EM, qual a importância do escalonamento vs. inversão da pirâmide?

A EM é uma doença muito heterogénea, na sua forma de apresentação e, sobretudo, na sua evolução, pelo que cada vez mais a tónica está no tratamento precoce com medicamentos de alta eficácia, todavia não curativos. Atualmente o leque de terapêuticas modificadoras é considerável e abrangente, mas, tratando-se de uma “doença para a vida”, o manejo destes medicamentos requer a contextualização do doente em si, das suas características individuais, bem como da forma e gravidade da doença, não havendo uma metodologia única aplicável tout court a todos os casos. O mais habitual, é começar por medicamentos designados de 1ª linha, se se tratar de doente sem incapacidade e com baixa carga lesional, com possibilidade de mudança terapêutica posterior (medicamento de 2ª linha, outro mecanismo de ação), i.e., proceder a escalonamento. Mas, perante um caso grave à partida, ou com fatores de pior prognóstico, ou com formas ativas de doença, então o paradigma é fazer a “inversão da pirâmide”, numa tentativa semelhante à do tratamento oncológico, de induzir rápida e eficazmente o controlo da doença e manter o doente na sua melhor forma.

Qual a abordagem mais apropriada a seguir nas formas progressivas primárias e secundárias da doença?

O primeiro desafio nas formas progressivas é reconhecê-las. Nas formas progressivas primárias não é raro haver atraso de diagnóstico, porque os sintomas podem ter sido atribuídos a uma outra doença. Nas formas progressivas secundárias não temos ainda ferramentas seguras que indiquem o começo dessa fase, quando a doença transita da fase surto-remissão, tornando-se assim um diagnóstico sobretudo retrospetivo. Ouvir o doente e a família, e avaliar se há agravamento, ainda que subjetivo, das funções motoras, da capacidade de marcha, da capacidade de executar tarefas da vida diária, da cognição, do volume encefálico, por exemplo, são regras de ouro no acompanhamento dos doentes com EM.

O diagnóstico destas formas da doença assume atualmente especial relevância, porque existem medicamentos com essas indicações específicas. Outra arma terapêutica para estes doentes é a reabilitação, que deve também ser precoce e continuada, assim como o tratamento sintomático, com medicamentos usados noutras situações, por exemplo antidepressivos, antispásticos, fármacos para controlo da função vesical, da disfunção erétil, etc.

Quais continuam a ser os principais desafios do diagnóstico e tratamento da EM?

Os principais desafios do diagnóstico ocorrem quando os sintomas são atípicos, ou a ressonância magnética mostra apenas lesões desmielinizantes isoladas ou pequenas, ou limitadas ao encéfalo, ou existem comorbilidades que podem originar lesões cerebrais equívocas, ou quando não há qualquer resposta à terapêutica específica. Ou seja, a exclusão de outras doenças e a ausência de melhor explicação continuam a ser parâmetros determinantes no diagnóstico. Mesmo assim, é necessário nalguns casos repensar o diagnóstico e voltar a estudar os doentes como da primeira vez.

Quanto ao tratamento, há vários desafios, o maior talvez seja a ausência de medicamentos que promovam efetivamente a reparação celular e a remielinização, com vista a parar de facto a doença. Outros desafios estão relacionados com a carga de monitorização analítica de alguns medicamentos, os procedimentos necessários para uma vigilância atenta dos efeitos adversos, as limitações de recursos humanos e logísticos para administração de terapêuticas intravenosas, as dificuldades de acesso a medicamentos em alguns centros, a burocracia e demora nas aprovações.

O Grupo de Estudos de Esclerose Múltipla, da Sociedade Portuguesa de Neurologia, preparou recentemente um documento para apresentar à sociedade. Que soluções propõe o GEEM, no sentido de melhorar a gestão desta patologia em Portugal?

Um dos objetivos major do GEEM é pugnar pelos melhores cuidados de saúde aos doentes com EM, incluindo naturalmente o acesso precoce às novas terapêuticas, com vista a diminuir a progressão da incapacidade, com ganhos óbvios para os doentes e também para a sociedade e para o sistema de saúde.

Nesse sentido importa criar um Registo Nacional da Esclerose Múltipla, à semelhança do que acontece noutras patologias, para melhor conhecer a epidemiologia e o impacto da doença no nosso país, obter dados que permitam a comparação com séries internacionais, ainda com a vantagem de poder ser uma ferramenta útil na gestão da doença e na alocação de recursos humanos, técnicos e financeiros.

E, também como já acontece noutras áreas reconhecidas pelo Ministério da Saúde, torna-se imperativo criarem-se Centros de Referência de natureza multidisciplinar, com o objetivo de agregar recursos altamente diferenciados e favorecer a implementação de uma rede integrada de cuidados, para que o sistema de saúde seja mais eficiente e haja maior equidade no acesso dos doentes à inovação.

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