Dor e Evolução
Assistente Graduado e Consultor de Anestesiologia. Diploma Europeu em Anestesiologia e Cuidados Intensivos (EDAIC). Competência em Emergência Médica pela OM. Formador Nível 5 em Emergência Médica pelo INEM. Doutorando em Medicina no Departamento de Ciências Médicas da Universidade de Aveiro

Dor e Evolução

Este não é mais um texto sobre cronificação da dor. Quero falar-vos da dor na evolução das espécies. A interação dos humanos com o meio ambiente depende da percepção do mundo: olfacto, gosto, audição e visão são essenciais para se alimentar, proteger, relacionar socialmente e reproduzir. Mas o tacto tem um papel mais pervasivo na nossa relação com o mundo.
É pela transdução de pressão, toque ligeiro e estiramento, que somos capazes de nos movimentar sabendo onde está cada parte do nosso corpo. Que sentimos o chão que caminhamos. A temperatura e a agressão química também são tacto e partilham sistema nervoso dos mecanorreceptores. Quando demasiado intenso, o estímulo táctil é reconhecido como dor.
Experiências sensoriais protegem-nos do dano no imediato: quando, por reacção, se retira a mão de uma superfície quente. Na infância percebemos que não podemos prolongar essa nocicepção intensa – causa lesões.

Somos castigados com estímulos do mesmo teor: desagradáveis, incómodos, negativos e que nos fazem sentir mal e apreensivos a mobilizar-nos.
A manutenção da dor assegura que o animal ancestral se vai proteger, que nem tem vontade de sair da gruta. Isso ganha tempo para os mecanismos de cicatrização funcionarem. A sensitização é automática, pois é a maneira do sistema nervoso manter o cérebro em alerta para a zona traumatizada e convencer o cérebro primata curioso a não explorar – pelo menos, temporariamente.

Porém, a dor aguda que se prolonga no tempo evolui para dor crónica. E a estrada de sensitização só tem um sentido, que é a descer… Não era expectável que um humano pré-histórico com uma lesão grave fosse capaz de sobreviver muito tempo. Perdia habilidades críticas para se alimentar ou proteger. Daí não houve oportunidade para favorecer evolutivamente aqueles que tinham mecanismos de neuroplasticidade otimizados para prevenir ou reverter a cronificação.

Os humanos, ao contrário da maioria das espécies, organizam-se em comunidade e envidam esforços para assegurar a sobrevivência dos mais frágeis. A sociedade primitiva criou condições para se viver até mais tarde, porque havia benefícios evolutivos para a comunidade: seres com comunicação abstrata e mais experiência do mundo.
Se hoje investimos em tratar quem sofre de trauma, doença ou cirurgia para que contribua mais tempo, temos a dívida de assegurar que não estamos apenas a oferecer sofrimento durante mais anos.

A dor crónica é demasiado prevalente nesta população. Prevenir a cronificação implica tratar eficaz, rápida e consistentemente a dor aguda, pois a sua persistência é o principal determinante.
A medicina abriu novas avenidas de prolongamento da vida, mas os mecanismos neuronais são os mesmos de espécies ancestrais. Precisamos abordar a dor aguda precocemente, de forma multimodal e multidisciplinar. Avaliar o resultado e reajustar em conformidade. Ou resta-nos aguardar milhões de anos pela evolução.

*O autor escreve de acordo com o A.A.O.

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