1 Dez, 2023

Doenças Neuromusculares. “No nosso país não existe uma tradição de investigação neste grupo de doenças e os apoios são escassos”

O diagnóstico de uma doença neuromuscular pode causar um impacto "devastador" na vida de um doente e na sua família. Em entrevista ao SaúdeOnline, Joaquim Brites, presidente da Associação Portuguesa de Neuromusculares (APN), aborda a situação atual das pessoas portadoras desta doença, os avanços que têm sido desenvolvidos a nível de investigações, bem como o que tem sido feito de forma a consciencializar para esta patologia.

Quais são as doenças neuromusculares mais prevalentes?

As doenças neuromusculares têm prevalências diferentes. Dado tratar-se de um grande grupo de doenças raras, o maior em todo o mundo, esse cálculo é efetuado pela média das patologias corretamente diagnosticadas. Na Europa, estima-se que a incidência média seja de um caso em cada 5 mil pessoas. Alguns estudos apontam para valores um pouco acima.

Pode parecer um pouco estranho que assim seja. No entanto, se atendermos ao facto de alguns diagnósticos poderem demorar vários anos a concluir, dada a raridade dos casos, com os avanços tecnológicos no domínio da investigação assistiremos nos próximos anos a algumas alterações nestes rácios.

O diagnóstico precoce e uma informação genética mais rigorosa, terão um papel cada vez mais determinante na descoberta de muitos doentes e, até, de novas variantes de doenças. Por isso, nos próximos anos, é de esperar alguma alteração destes critérios.

 

Qual o impacto destas doenças na vida dos doentes e cuidadores?

Tratando-se de doenças raras, genéticas na sua quase totalidade, progressivas e muito incapacitantes, elas atingem todas as faixas etárias. Por essa razão, o impacto que impõem a qualquer família é, por vezes, devastador. Esse, é mesmo o termo!

Na atualidade, planear o nascimento de um filho implica estar disponível para um acompanhamento que é cada vez mais exigente. Esse planeamento, que acontece cada vez mais tarde por razões pessoais ou de carreira profissional e, até, pela situação económica da família, inclui alguma preocupação com todas as condições que se apresentem no futuro. Mas, o aparecimento de uma doença neuromuscular, ou de qualquer outra, nunca é previsível nem, sequer, equacionado.

As alterações que ocorrem na vida de um casal após o diagnóstico, seja ele mais precoce ou tardio, incluem tomadas de posição e decisões que não são nada fáceis. Da perda de uma carreira contributiva de um dos progenitores às muitas modificações estruturais da vida em comum, adaptações funcionais na habitação, relação com a família mais próxima e um desconhecimento total do papel de cuidador, são apenas algumas das primeiras necessidades a equacionar.

O resto, virá em formatos e em tempos diferentes ao longo da evolução da doença. É por isso que o treino da família, a sua formação e o seu conhecimento da verdadeira informação, são os caminhos essenciais para a minimização de um sofrimento que pode levar à total degradação da saúde mental de quem, diariamente nas 24 horas, durante X anos, convive com a doença.

 

Como avalia o acesso a cuidados de saúde (diagnóstico, tratamento, reabilitação, etc.)?

Tal como atrás referi, a imposição de um projeto novo, porque inesperado, obriga a que novas rotinas e novas formas de abordagem sejam estudadas pela família. Se, no diagnóstico, o acompanhamento já se demonstra deficitário, porque impõe um grande esforço psicológico e tem um parco apoio psicossocial, o caminho seguinte percorre-se com as mesmas dificuldades.

No nosso país, os doentes crónicos, como é o caso, que exigem um acompanhamento continuado e um tratamento especializado, são considerados doentes urgentes, mas não prioritários. Desse modo, os hospitais onde são seguidos, normalmente hospitais centrais ou distritais invocam razões e dificuldades diversas para que não lhes sejam dadas as sessões de reabilitação, ou outras terapias, a que têm direito e que constituem uma regra básica para a manutenção da sua qualidade de vida. Em muitas áreas da saúde, sente-se uma enorme falta de formação e, até, de interesse, pelas pessoas portadoras deste tipo de problemas neuro degenerativos.

“A falta de reabilitação é, sem sombra de dúvida, a mais destruidora e a que mais contribui para a perca de algumas funções essenciais para o quotidiano, como escrever, comer, “teclar”, etc.”

 

Que medidas devem ser adotadas para se melhorar esta situação?

A APN tem feito imensas propostas, nos muitos Fóruns em que tem participado. A formação de terapeutas, que já referi, seria uma enorme mais-valia. A ela, juntam-se fatores como as alterações dos horários dos Serviços de Medicina Física e de Reabilitação dos hospitais, a implementação obrigatória de um Plano de Continuidade de Tratamentos orientados por objetivos, com ou sem a necessidade de supervisão de um médico fisiatra (dependendo dos casos).

Neste momento, a consulta de Fisiatria serve apenas para manter o doente em processo hospitalar, em lista de espera para os tratamentos e, sobretudo, para que o hospital em causa não perca o financiamento pela capitação dos processos que gere. Em causa, está também a equidade e o direito à saúde.

Por vezes, interrogo-me como reagiria o SNS e a sua Direção, se, como acontece em alguns países do mundo, chegássemos ao ponto de as famílias terem necessidade de judicializar a saúde. Como iria responder à acusação de degradação da qualidade de vida de alguém, por negligência, falta de acompanhamento real ou ineficácia do serviço? Deveremos esperar para que alguém tente o que nunca foi feito?

 

E em termos de empregabilidade e direitos sociais?

Nessa matéria, Portugal encontra-se entre os países que ratificaram a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e que, procura aplicar a sua base principal nas várias decisões políticas que tem tomado. A ENIPD – Estratégia Nacional para a Inclusão de Pessoas com Deficiência 2021-2025, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros 119/2021, de 31 de agosto, tem procurado implementar as várias recomendações constantes nos 8 eixos principais.

Princípios como a Cidadania, a Igualdade, a Promoção de um Ambiente Inclusivo, ou não exclusivo, como eu gosto mais de lhe chamar, a Educação, a Autonomia e a Vida Independente, o Trabalho e o Emprego, os Serviços e Apoios Sociais, a Cultura e o Lazer, o Conhecimento, a Investigação, a Inovação e o Desenvolvimento, entre outros, foram definidos como prioridade estratégica. Se quisermos avaliar o que, na prática, mudou, não seremos capazes de o fazer de forma fácil porque tudo anda a uma velocidade muito baixa.

“No essencial, penso que será necessário dar passos maiores e muito mais efetivos para uma verdadeira sensibilização de todos os intervenientes e decisores. Sejam eles políticos, ou não.”

 

No que diz respeito à investigação e realização de ensaios clínicos, é preciso dar-se mais atenção a estas doenças?

Como é do conhecimento generalizado, sobretudo de quem, como eu, acompanha a evolução da investigação em doenças raras nos últimos 30 anos, os ensaios clínicos não acontecem por decreto. É necessária uma vontade expressa de alguns grupos de clínicos investigadores, que conheçam e acompanhem as diversas áreas em que os ensaios estejam a acontecer. Infelizmente, no nosso país, não existe uma grande tradição de investigação neste grupo de doenças e os apoios são muito escassos. O próprio Estado não investe nada neste setor da saúde.

Em muitos outros países da Europa, assiste-se à criação de Centros de Referência devidamente acreditados nas 24 Redes Europeias de Referência (ERN’s), capazes de serem considerados como Centros de Excelência para o desenho, desenvolvimento e acompanhamento de novos modelos que possam conduzir à implementação de ensaios que permitam acelerar a investigação e as suas conclusões, na criação de novas terapias.

“A urgência na implementação de novos Centros e da criação de uma rede mais próxima das necessidades destes doentes, permitirá que o nosso país esteja na linha da frente da inovação em saúde.”

 

Qual o objetivo do NeuroPodcast?

A ideia nasceu da equipa técnica da APN, quando procurava temas para um projeto de comunicação e de informação sobre doenças neuromusculares, a apresentar ao Instituto Nacional para a Reabilitação e ao seu programa de apoio a projetos das ONGPD.

O termo PODCAST já era muito familiar, uma ferramenta com grande impacto pela sua crescente utilização, ao que bastou juntar o prefixo Neuro para que se pudesse associar uma coisa à outra. O objetivo base é o de informar em várias vertentes, bem como associar a visão das pessoas diretamente afetadas com qualquer doença neuromuscular, ou equiparada, à visão dos responsáveis pelos vários setores onde se decidem direitos, se discutem necessidades e se apresentam soluções.

Juntámos as nossas ideias e solicitámos o apoio à BIOGEN que, de imediato, aceitou o desafio e nos ajudou a concretizar mais esta etapa.

Nos dois episódios já publicados, a recetividade tem sido muito boa e tem servido para alertar os vários setores da deficiência para a necessidade, cada vez maior, de uma informação simples e objetiva.

 

Além do NeuroPodcast, que outras iniciativas esperam organizar para alertar para os problemas dos doentes neuromusculares?

A APN tem sido frequentemente convidada a participar em iniciativas públicas, tais como Seminários, Workshops, Conferências, Webinars, entre outros, para divulgar a sua visão sobre o futuro deste setor, no que respeita ao ato de tratar e ao de cuidar. Faço questão de os mencionar em separado, porque são coisas diferentes.

Temos, por isso, procurado divulgar a necessidade de alargar as poucas respostas existentes, face ao crescente envelhecimento da população e ao consequente aumento da sobrevida das pessoas que vão beneficiar de tratamentos inovadores. É, pois, necessário pensar como vamos cuidar, daqueles que queremos tratar.

“Ao longo do ano 2024, procuraremos organizar alguns seminários sobre os vários temas. Mas, daremos uma especial atenção à formação em reabilitação para doenças neuromusculares, que já estamos a preparar.”

 

MJG/CG

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