Apelos, “porrada” e “carcanhol” (II)
Médico de família

Apelos, “porrada” e “carcanhol” (II)

Em pretérito texto referimos a questão da violência contra profissionais sem supor que, entretanto, a comunicação social nos viesse dar notícia de novo episódio reforçando a tese segundo a qual a impunidade reinante aumenta a afoiteza dos agressores. A tutela, ao decidir poupar os ofensores a medidas punitivas, está além do mais, a usar indevidamente dinheiros públicos para cobrir os custos das agressões. Não se pode dizer que o ministério da saúde tenha ignorado o problema e é prematuro rejeitar como pusilânimes as iniciativas anunciadas. Porém, a verdade é que, até agora, a resposta aos casos recentes parece ter-se pautado pela misericordiosa inércia.

Adiante.

Orçamento e financiamento do SNS

Escolher é excluir

H.Bergson

 

O “subfinanciamento dos cuidados de saúde” anda na boca de quase todos. Da esquerda à direita, dos economistas aos comentadores, dos profissionais aos utentes, para todos ganhou foro de mantra. Contudo, este mantra tem algo de nebuloso, tal como o nome secreto de Javé. Não me recordo de alguma vez ter ouvido explicitar a quantia necessária para liquidar com o tal subfinanciamento. Enfim, qual o montante necessário para financiar devidamente o SNS. O fim da era do subfinanciamento ficará sempre lá para as bandas onde o arco-íris assenta no solo, enquanto se não avaliar com algum rigor o desperdício. Antes de exigir mais recursos é mister rentabilizar os que temos. A definição exata do que é desperdício em cuidados de saúde é provavelmente impossível de se conseguir, mas é imprescindível conseguir um consenso pragmático. Por outro lado, o cálculo exaustivo dos gastos desnecessários também não é tarefa simples. (*)

O combate ao desperdício tem como contraponto a redução dos montantes necessários para cobrir o tal subfinanciamento e é argumento de peso junto dos alocadores de recursos.

Vai sendo tempo de se abandonarem as visões metafísicas dum mundo onde os almoços não se pagam, onde se pode gastar impunemente o que se não tem, onde impera a falsa ciência que renega os mais insofismáveis princípios da ciência económica. Os recursos não fluem duma cornucópia, nem caem do céu como o maná bíblico, nem tão pouco emergem por via dalgum poder milagreiro com aptidões para multiplicar pães e peixes. Estas quimeras não são reprodutíveis no mundo real.

Assim sendo, o abrir dos cordões à bolsa, como se exige por aí, para mitigar sem limites os sufocos financeiros do SNS terá como desfecho a médio prazo maior asfixia. É o paradoxo do imediatismo, que não tem em conta a sustentabilidade: é o gastar hoje sem olhar para o amanhã.

Mas há um outro paradoxo que diz respeito aos demasiado prudentes, excessivamente focados na poupança a todo o vapor. A restrição financeira leva a um despesismo impercetível para os menos avisados. Há décadas atrás trabalhei num pequeno hospital distrital onde “funcionava” um serviço de obstetrícia … que não fazia partos, limitando-se o obstetra aí colocado a fazer algumas consultas! Dum ponto de vista (míope) financeiro seria um regalo comparar os exíguos gastos deste pseudo-serviço com qualquer congénere serviço normal de obstetrícia. Contudo, dentro duma perspetiva económica, que relacione custos com a produção, esta anedótico serviço era um desastre. Os escassos recursos que lhe eram alocados pouco mais seriam que total desperdício, se tivermos em conta que se traduziam em produção irrelevante. Se é verdade que nem todos os cortes são cegos, uns tantos haverá que inequivocamente resultam em mais deficit e não em poupança. Gastar pouco para produzir nada é esbanjar, não é poupar.

Chegados a este ponto há que repetir: aumentar a rentabilidade do SNS é um objetivo vital para a sua sobrevivência. Derramar dinheiro sobre um sistema onde o desperdício, decorrente da baixa produtividade, cobra uma percentagem obscena é caminhar para o abismo.

A escandalosa baixa produtividade (o que não significa pouco volume de trabalho) é, em larguíssima medida, fruto dum sistema informático que insiste em se manter disfuncional. O atual parque informático do SNS é um verdadeiro cancro de ineficácia que gera brutal desperdício que a tutela insiste em ignorar. É, indiscutivelmente, uma ameaça séria à sustentabilidade do SNS, não só porque o delapida financeiramente, como erode emocionalmente os profissionais.

Aqui reside um dilema para a Sra. Ministra a que, por muito que queira, não poderá continuar a fugir, recolhendo-se na zona de conforto da propaganda, da simpatia e dos apelos veementes. Ou mantém a estouvada política do SPMS e corrói a motivação dos profissionais, ou afronta a cidadela SPSM, recuperando algum capital de confiança junto daqueles. Agradar a Gregos e Troianos é puro sonho votado ao insucesso. No caso presente, a inação será uma escolha a favor do status quo imposto pelo SPMS e, consequentemente, uma rejeição das aspirações dos profissionais.

 

(*) Despesa em Saúde: É Grande, Mas Podia Ser Menor…

Luís Gouveia Andrade

 

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