27 Mai, 2023

António Gentil Martins. “Defendo um seguro nacional de saúde obrigatório”

Com uma lucidez desarmante e uma memória invejável, o cirurgião pediátrico António Gentil Martins – 92 anos – desfia a origem da sua paixão pela Medicina e a carreira, de mais de seis décadas. O também ex-bastonário da Ordem dos Médicos acredita que o SNS “não tem salvação” se não mudar de modelo e pede liberdade de escolha para os portugueses no acesso à saúde, através de um sistema convencionado e que incluiria um seguro obrigatório para todos.

Teve uma carreira longa, de mais de 60 anos. Como olha para todos esses anos de trabalho?

Formei-me em 1953. Estava hesitante entre Engenharia e Medicina e um dia, ao ir para o liceu, vi um homem atropelado, a sangrar, e que não sabia se estava vivo ou morto. Queria ajudar e não sabia como. Foi assim que decidi ser médico. Uma das coisas que uma mãe excecional me transmitiu foi o espírito do meu pai (o mais completo atleta português de todos os tempos, e também médico): o espírito de ajudar os outros. Aliás tinha uma tradição médica fabulosa: um tetra-avô (Soares Franco) que foi fundador da Sociedade de Ciências Médicas, em 1822; um avô (Francisco Gentil) que fundou, em 1923, o Instituto Português de Oncologia e promoveu a criação da Liga Portuguesa Contra o Cancro.

Sentiu também vontade de reinventar a Medicina e de inovar?

Sempre pensei que devemos avaliar o que vamos fazendo, pensar se essas foram as melhores opções e se não existiriam melhores alternativas. Como “as palavras voam e a escrita permanece” publiquei, a partir de 2019, mais de 26 trabalhos originais na Imprensa Médica Internacional sobre técnicas e procedimentos que considerei melhores do que aqueles que tinha aprendido, o que não pudera nunca concretizar por falta de tempo disponível (trabalhando de manhã no Hospital de D. Estefânia, de tarde no Instituto Português de Oncologia e depois no Consultório Privado).

Primeiro porque gosto de crianças e depois porque tinha uma irmã enfermeira dedicada à Pediatria e casada com um Pediatra. Pensei que o ideal seria o existir uma Equipa multidisciplinar. Logo que me formei, e tendo feito um Curso de Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras de Lisboa, fui trabalhar, como voluntário, para o Instituto Português de Oncologia, que o meu avô dirigia e, simultaneamente, completei o então denominado Internato Geral dos Hospitais Civis de Lisboa. Consegui, entretanto, uma Bolsa de Estudo por um ano para me especializar em Cirurgia Pediátrica. Acabei por ficar três anos em Inglaterra (Londres e Liverpool) entre 1957/1959, até sentir que estava bem preparado para voltar a Portugal. Em 1960, quando regressei, propus ao meu avô a criação de um “Serviço específico para crianças”, no Instituto do Cancro, pois não havia então no mundo nenhum serviço que juntasse a parte médica e a parte cirúrgica dos tratamentos das crianças no mesmo local. E assim foi este o primeiro serviço criado a nível mundial. Para além do Instituto do Cancro, onde estava no período da tarde, comecei também a trabalhar nos Hospitais Civis de Lisboa, concretamente no Hospital de Dona Estefânia, de manhã. Ao fim do dia, trabalhava no meu consultório privado. Tendo encerrado o Consultório em 2020, passei a ter tempo para escrever trabalhos científicos. Atualmente sou Especialista em Cirurgia Pediátrica, Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética e sub-Especialista em Oncologia Pediátrica.

O Prof. acabou por ficar conhecido do grande público essencialmente devido às várias cirurgias de separação de gémeos siameses que foi fazendo.

Eu tinha procurado fazer uma boa preparação polivalente. Aliás a primeira vez que, em Portugal, se colocou uma válvula para tratar uma Hidrocefalia, foi por mim. Quando chegaram os siameses, que foi aquilo que me deu mais projeção, essa preparação foi uma enorme vantagem porque conseguia corrigir múltiplos problemas numa única intervenção cirúrgica, embora fossem necessárias longas horas.

Quantas cirurgias desse género realizou?

Ao todo, sete, com nove sobreviventes.

Consegue identificar o momento mais marcante da sua carreira?

O mais importante terá sido num Congresso Médico em Inglaterra, ao ter recebido uma salva de palmas depois de ter apresentado um trabalho: um doente, a quem removi, de uma só vez, toda a pele da cara, como solução inédita, mas a única possível, dada a extensão das lesões malignas. Esse doente tinha uma doença congénita que lhe causava cancro de pele quando exposto ao sol.

Ainda hoje lhe pedem conselhos para avaliar algum caso clínico?

Pedem e eu coloco logo reservas, por considerar que não estou atualizado. Desde que fechei o consultório, procuro encaminhar os doentes para um colega que considere experiente.

“Ao ir para o liceu, vi um homem atropelado, a sangrar. Queria ajudar e não sabia como. Foi assim que decidi ser Médico”

Há algo que sente que devesse ter feito durante a sua carreira, e por algum motivo, acabou por não fazer?

Penso ter feito tudo o que achava que podia e devia fazer, procurando dar sempre o meu melhor, seguindo os velhos princípios do Olimpismo. Tentei estar sempre disponível: quando havia um problema com um doente operado, no hospital tinham indicação para me contactar de imediato. Chegou até a acontecer, de madrugada, eu chegar junto do doente antes mesmo do meu Colega da Equipa de Urgência.

Foi também bastonário da Ordem dos Médicos. Como é que recorda esse período?

Logo a seguir ao 25 de abril, os sindicalistas destruíram a OM. Afirmavam que a OM era “fascista” e que o que era preciso era um Sindicato que defendesse os médicos, que eles consideravam trabalhadores como quaisquer outros. Por isso, não existiu OM entre 1974 e 1976. Comecei a trabalhar por uma Ordem dos Médicos desde 1974 até ela se impor juridicamente, em 1977. Estive como Presidente de 1977 até 1986 (três mandatos) e entretanto também presidi dois anos à Associação Médica Mundial (1981/1983). A grande prejudicada foi a família. Tivemos 8 filhos e foi justamente durante a juventude deles que fiquei “preso” à OM. Eu não tinha tempo e foi a minha extraordinária mulher que teve de aguentar e gerir tudo.

Não se arrepende?

Não, porque penso que fiz o que devia, o necessário e mesmo fundamental para o País. Embora com remorsos, voltaria a fazer o mesmo.

“Cada vez mais temos uma Medicina para ricos e outra para pobres”

O que necessário alterar para melhorar o estado em que o SNS se encontra?

O SNS está uma desgraça, à vista de todos. E “não há pior cego do que aquele que não quer ver”. Não compreendo como é que os nossos políticos ainda não perceberem que o SNS como está não tem salvação e que tem de mudar radical e urgentemente. Cada vez mais temos uma Medicina para ricos e outra para pobres e somos dos países em que as pessoas mais gastam com a saúde. Neste momento, no nosso SNS teoricamente não se defendem as Convenções. Mas elas existem para análises, radiologia, etc. E porquê? Porque sai mais barato ao Estado pagar aos Convencionados do que utilizar os seus próprios Serviços! Para mim a solução do problema passa, com já disse, por “liberdade de escolha” e “Convenções”. Num sistema Convencionado, como eu defendo, existem preços tabelados para os múltiplos atos clínicos e consultas.

Um sistema convencionado não poderia acelerar a degradação do SNS?

O Sistema nunca poria em causa a universalidade dos direitos. Mas foi irresponsável afirmar que se deve dar tudo a todos e de borla. Todos sabemos isso não ser possível. Eu defendo um Seguro Nacional Obrigatório, para o qual todos descontem de acordo com a sua capacidade financeira, numa percentagem que permita atingir as verbas necessárias a um correto funcionamento do Sistema (que deve ser estável e não se alterar com os ciclos políticos).

A grande vantagem do sistema convencionado seria melhorar o acesso dos utentes aos serviços de saúde?

Certamente. O sistema Convencionado permitiria melhorar o acesso. A minha esperança é que apareçam políticos que percebam que o Estado não tem de fazer tudo. O modelo de saúde tem de mudar, dando liberdade de escolha às pessoas.

Que conselho daria ao atual ministro da Saúde?

Dizia-lhe que tem de mudar o modelo. Se não mudar o modelo de saúde, não vai a lado nenhum. E o novo modelo tem de dar liberdade de escolha e aceitar as Convenções. E são fundamentais Carreiras Médicas estruturadas, estáveis mas evolutíveis e motivadoras. Se os profissionais não tiverem boas e estimulantes condições de trabalho não poderão produzir a melhor medicina. Por outro lado, a remuneração tem de ser urgente e profundamente revista, não podendo deixar de corresponder ao valor e importância da sua atuação. Os profissionais têm de ser compensados a todos os níveis de acordo com o seu trabalho; quem trabalhar mais e melhor deve até poder receber mais.

Concorda com os sucessivos aumentos do Orçamento para a Saúde, sem melhorar a gestão? Parece que estamos a atirar dinheiro para cima do problema.

Temos de gerir melhor e penso que os serviços de saúde devem ser dirigidos preferencialmente por médicos, muito embora apoiados por administradores. Temos de apostar na prevenção para melhorar a saúde, até porque sai mais barato. A população está a envelhecer e quanto maior a idade, mais pesa no Orçamento. E se vivemos mais anos devido ao progresso da ciência, a verdade é que na idade avançada, somos dos países com menos anos de vida saudável.

“O sistema convencionado permitiria melhorar o acesso”

Que significado têm para si os prémios e condecorações que foi recebendo ao longo da sua vida?

Tenho imensas condecorações: a Grã- Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, a Medalha de Honra da Ordem dos Médicos, a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde, o Prémio da Ética no Desporto. Deram-me também um doutoramento Honoris Causa pela Universidade Europeia, já que nunca tive tempo para escrever uma Tese de Doutoramento. Tem sido muito agradável, mesmo se exagerados, sobretudo porque são dados em vida e não depois de morto.

Como é que gostaria que o país o recordasse?

A única coisa que gostava era que os meus filhos gostassem de ter tido o pai que tiveram. O país decidirá o que entender. Se calhar até me dão o nome de uma rua. A verdade é que não sou politicamente correto. Acredito que as pessoas têm de dizer aquilo em que acreditam.

SO

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