11 Jul, 2022

Entrevista a José Fragata. Sistema de saúde enfrenta “uma crise sem precedentes”

O cirurgião cardiotorácico, que trabalha há mais de 40 anos no SNS, propõe a criação de um "grande seguro nacional", que permitisse aos doentes serem tratados no "sistema público, social ou privado”.

O cirurgião José Fragata considera que o sistema de saúde português atravessa “uma crise sem precedentes”, defendendo que este seria o momento para uma “reforma profunda” orientada para um sistema inclusivo ao integrar todos os setores prestadores de cuidados.

A ideia é expressa pelo médico e professor universitário no livro “A reforma necessária do sistema de saúde português”, que será lançado na próxima quarta-feira, no Grémio Literário, em Lisboa, e cuja apresentação estará a cargo do economista e antigo ministro António Bagão Félix.

Em entrevista à agência Lusa, José Fragata disse que se trata de um livro de opinião dirigido às pessoas que se interessam pelo tema e que devem reclamar “a mudança necessária no sistema de saúde”.

“Não foi para os amotinar mas para lhes criar consciência de que isto pode parecer bem, mas não está bem”, disse o cirurgião cardiotorácico, ressalvando que este livro “não é política, não segue nenhuma linha, não segue nenhuma orientação. É um ato de cidadania”.

Conhecedor do sistema de saúde português, no qual trabalha há mais de 44 anos, continuadamente no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas também no setor privado, José Fragata faz uma análise no livro do panorama da saúde em Portugal.

Propõe uma reforma orientada para um sistema que integre todos os setores prestadores de cuidados de saúde, para responder “com modernidade” aos desafios crescentes, mas sem perder “as garantias de qualidade, de acesso e universal de que o SNS se reclama, mas que não cumpre hoje cabalmente”.

À Lusa, o autor referiu que o SNS é financiado em cerca de 59% com os impostos dos cidadãos. Contudo, o gasto geral da saúde em Portugal são 100%, o que quer dizer que os restantes 41% saem bolso dos cidadãos, através dos seguros ou pagamento direto.

“O financiamento é um problema crítico e não estou a ver que o Estado tenha capacidade de colocar mais dinheiro dos nossos impostos na saúde, sobretudo numa altura de grande necessidade, em que vai ser necessário aumentar despesas de defesa e outras despesas”, sublinhou.

“A simples injeção de dinheiro ou contratações esporádicas aqui e ali são pensos rápidos que, para o grau de degradação a que chegámos, não vão resolver o problema”, disse, elucidando: “Quando uma empresa está em vias de falência, não é injetando mais capital que se resolve o problema da empresa, é reestruturando-a. Neste caso, a restruturação é uma reforma, mas a reforma do sistema de saúde é uma tarefa hercúlea”.

Especialista defende “grande seguro nacional”, que integre todos os sistemas

No seu entender, “a única maneira” possível, na senda de outros países europeus de cobertura universal, seria a criação de “um grande seguro nacional”, regulado pelo Estado, que permitisse aos doentes serem tratados “a tempo e com qualidade, fosse no sistema público, no sistema social ou no sistema privado de saúde”.

Esse seguro devia ser comparticipado pelo Estado, com um prémio ajustado ao rendimento de cada família.

Para isso, o país não deve dividir-se em saúde pública e saúde privada. “Não podemos esquecer que hoje quase metade da capacidade instalada em camas nos serviços está no setor privado da saúde e não podemos esquecer que nos últimos anos o Estado não investiu em macroestruturas na saúde”.

Na sua opinião, deixar esta capacidade instalada de fora só porque é privada “parece um desperdício e uma tolice de países pobres”.

Por isso, sustentou, “o Estado devia facilitar a possibilidade de os doentes serem tratados a tempo e com qualidade, fosse no sistema público, no sistema social ou no sistema privado de saúde”, uma organização que teria de estar a cargo do SNS, que se passaria a chamar “sistema nacional de Saúde”, integrando os três setores.

Apontou também “as deficientes condições de trabalho e de remuneração” que têm levado a que um número médio de 350 médicos e de 1.200 enfermeiros abandonem por ano o país para irem trabalhar no estrangeiro, ao que se junta a debanda para o setor privado.

“Não teria muito mal se fossem para o setor privado, desde que eles pudessem ser utilizados, porque a doença não é pública nem privada”, declarou.

José Fragata lamentou ainda que o SNS, que foi criado como “um mecanismo de equidade”, se tenha transformado neste momento num “mecanismo promotor de desigualdades e de assimetrias, porque sujeita ao mesmo esforço pessoas que têm capacidades diferentes”.

Listas de espera são um “mal grave”

O cirurgião cardiotorácico também  alerta que as listas de espera são um “mal grave” do sistema de saúde, causando o agravamento das doenças e, nalgumas especialidades, como a cirurgia cardíaca, acarretam uma mortalidade intrínseca agravada.

O médico e professor universitário ressalva que o problema das listas de espera não é exclusivo de Portugal e agravou-se nos dois últimos anos, principalmente pelos impactos pandémicos nos serviços de saúde, atingindo “tempos verdadeiramente proibitivos” e “perigosos”.

“É o que se conhece por ‘legião de doentes não covid’, os doentes que ficaram para trás”, escreve no livro, sublinhando que o problema das listas de espera em Portugal é “ainda agravado pela teimosia política que continua a reclamar para o SNS a capacidade de lidar com elas, quando todos percebem que essa capacidade não existe mais”.

Em entrevista à Lusa, José Fragata disse que as listas de espera são para cirurgias, mas também para exames, devido à falta de profissionais.

Não há radiologistas, anestesistas, agora soubemos que os obstetras também não chegam. Isto é uma bola enorme de neve que não se vai resolver nem com comissões, nem com contratações apressadas, nem com mais 10% ou 20% de ordenado”, alertou o especialista, para quem é preciso uma “reforma à séria” que ultrapasse “uma mera legislatura de quatro anos”.

Para José Fragata, o Estado lançou-se numa competição com o setor privado, mas não tem capacidade de mercado para o fazer e os médicos vão-se embora para onde têm melhores condições salariais.

“Mas não só condições salariais são condições técnicas e de aparelhagem porque o Estado há muito tempo deixou de se equipar, portanto, deixou de ser competitivo”, lamentou.

A crise que já se vivia foi agravada com a pandemia: “o serviço de saúde cristalizou” e refletiu-se no aumento da mortalidade por causas não covid, no “‘burnout’ brutal” dos profissionais e no número de doentes, sobretudo oncológicos, que foram deixados para trás e que perderam a sua janela terapêutica.

“São umas contas que não estão ainda bem feitas, mas não são umas contas simpáticas”, lamentou.

Mas, ressalvou, nenhum sistema de saúde estava preparado para uma pandemia com este, “daí a OCDE ter vindo com a noção de que os sistemas de saúde devem ser resilientes (…) com capacidade de se adaptar às crises e sair direitinhos dela”.

“Ora, isto foi aquilo que o nosso sistema não teve porque adaptámos à portuguesa, desenrascámos isto, não nos saímos muito mal, não há nenhuma crítica da minha parte em relação a isso, mas da resiliência faz parte voltar em boas condições e nós voltámos em condições muito piores”, frisou.

Sobre o que se aprendeu com a pandemia, o cirurgião apontou a necessidade de se ter serviços de saúde com “uma enorme flexibilidade” e o valor dos cuidados de proximidade e da integração dos cuidados de saúde.

“Aprendemos que é importante estratificar as populações de risco, porque as pandemias não fustigam da mesma maneira todos os mesmos grupos de risco” e que “as parcerias com as universidades, com as indústrias, com o setor privado, o setor social são imprescindíveis a qualquer sistema de saúde moderno”.

Contudo, disse, “eu não vejo, não sinto, que isso esteja a ser feito, mas isso podia ser incorporado numa reforma do sistema de saúde”, considerando que era altura de aprender e pôr mãos à obra: “Estamos, em princípio, numa legislatura estável com uma maioria que vai durar quatro anos, e numa altura em que, apesar da guerra e da crise económica que aí vem, vai haver injeção de dinheiro para projetos”.

“Mas na minha opinião é que mais dinheiro num sistema que está com as falhas destes é dinheiro queimado, não vale a pena”, sustentou.

“Nós podemos pensar em toda a bondade e beleza do projeto poético do Serviço Nacional de saúde que eu tenho vivido há 44 anos, mas na realidade as pessoas já não se guiam por essas paixões”, rematou José Fragata.

SO/LUSA

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