26 Set, 2019

“VIH Sida, Que lições?” É necessário investir mais, defendem especialistas

Portugal já atingiu os três noventas mas é preciso fazer mais e chegar aos 95%, diz Isabel Aldir, que sublinha que existem pessoas que ainda mantêm ideais erradas sobre o VIH.

Portugal integra o pequeno grupo de países que conseguiram antecipar a meta dos três noventas, traçada pela ONU em 2016: 90% dos infetados diagnosticados, 90% destes em tratamento e 90% dos tratados, com carga viral não detetável. Duas já haviam sido ultrapassadas em 2016: 91,7% dos casos diagnosticados e 90.3 dos doentes em tratamento apresentando supressão virológica. Faltava atingir os 90% de diagnosticados em tratamento, meta atingida em 2017, de acordo com dados disponibilizados pela Direção-Geral da Saúde.

Pese o avanço colossal que o atingir destas metas representa, que coloca Portugal ao lado de países como a Dinamarca, Islândia, Suécia, Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, a verdade é que ainda são muitos os desafios que se colocam nesta área.

 

Europa de Leste atrasada nas metas

 

Desde logo, é preciso ter em conta que há ainda uma média de 53 países europeus que se comprometeram com esse objetivo onde apenas 69% dos doentes estão identificados, 58% não está em tratamento e apenas 36% deixaram de ser uma ameaça na transmissão do vírus. Os países da Europa de Leste são os grandes responsáveis pelas percentagens tão baixas, explicou há dias Masoud Dara, o coordenador do Programa de Doenças Transmissíveis da OM, que classificou Portugal como um caso exemplar.

Também importa notar que Portugal continua a apresentar um número anual elevado de novos diagnósticos. Mesmo com mais de 90% do número estimado de pessoas que vivem com VIH já diagnosticadas, “Portugal enfrenta ainda o desafio de diagnosticar mais de 3000 casos, o que representa um número de casos por diagnosticar por 100 000 habitantes mais elevado que qualquer outro país da Europa Ocidental”, informa o Relatório de Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde de 2019.

Para avaliar o muito que se aprendeu e o que ainda falta fazer, a Associação Portuguesa de Engenharia e Gestão da Saúde organizou uma mesa redonda, em Queluz, que contou com a presença de um leque muito diversificado de responsáveis das áreas que se cruzam com a doença, do ativismo social à clínica e à academia.

Para abordar o tema, a organização, que contou com o apoio da Gilead Sciences, convidou a Dra. Isabel Aldir, coordenadora do programa Nacional VIH/SIDA da DGS. A moderação esteve a cargo do Professor João Gamelas, Coordenador da Unidade de Ortopedia e Traumatologia do Hospital Lusíadas de Lisboa e Presidente do Conselho Geral da APEGSAUDE.

Isabel Aldir centrou a sua intervenção inicial no relato da história da epidemia em Portugal, salientando os marcos desse percurso de mais de 35 anos.

 

População menos informada do que o desejável, diz Isabel Adir

 

De entre os aspetos mais relevantes, disse, “destaca-se o papel da Professora Odette Ferreira, que com grande determinação e coragem conseguiu implementar medidas de prevenção que à época determinaram uma verdadeira disrupção do modelo de prevenção em Saúde Pública, como o programa Troca de Seringas” e as campanhas de prevenção junto das comunidades em maior risco. “Não fosse o seu desempenho extraordinário, não estaríamos aqui hoje a comemorar termos atingido o objetivo dos três noventas, proposto pela OMS”, disse.

Isabel Aldir salientou ainda que não foi atingido na plenitude o objetivo da informação da população sobre os diversos aspetos que marcam a doença. “Se hoje fizéssemos um inquérito para saber se uma mulher com VIH pode ou não engravidar, certamente que mais de 90% das pessoas diriam que não”, ilustrou. “O mesmo se perguntássemos se um seropositivo sem carga viral detetável poderia ter relações sexuais sem utilizar o preservativo”.

Outro dos desafios que ainda falta concretizar é o da comunicação plena entre serviços e profissionais. “Há quem defenda publicamente que deveríamos delegar parte da assistência prestada nos hospitais para os cuidados de Saúde Primários. Por muito que se tenha tentado, isso ainda não foi possível”. As razões para este divórcio entre níveis de cuidados é explicado por Isabel Aldir, por um lado, pela falta de vontade dos doentes em serem seguidos na zona em que residem por temerem quebras de confidencialidade potenciadoras de discriminação e por outro, “porque muitos dos que afirmam publicamente que isso deveria acontecer, estariam na linha da frente da contestação a uma eventual medida nesse sentido”. “Ainda há muito medo de que nos ocupem as quintas”. É preciso ultrapassar este sentimento porque só com equipas multidisciplinares será possível enfrentar os desafios que teremos que enfrentar no futuro.

 

Nova meta: 95%

 

Um futuro que passará, explicou, por atingirmos nova meta. A dos três 95%. “Ainda que pareça uma diferença pequena face ao que já conseguimos, não será fácil”, alertou.

Outra das metas que importa alcançar, revelou, é a da implementação de programas de redução do risco, como o que configura a profilaxia pré-exposição (PrEp), particularmente junto dos profissionais do comércio sexual, onde a prevalência continua a ser muito elevada, bem como as populações migrantes, onde se concentra a maioria dos casos diagnosticados nos últimos anos.

Presente no debate, Cristina Casas, Coordenadora do Núcleo de Políticas Migratórias do Alto Comissariado para as Migrações destacou o muito trabalho feito em parceria com a DGS no sentido de atenuar os problemas de acesso dos imigrantes aos cuidados de saúde, um problemas que de acordo com diferentes intervenientes ainda persiste, particularmente no que se refere a não nacionais sem documentos, que por não terem número de utente de saúde não conseguem aceder, de todo, aos cuidados de saúde. Isto, apesar de a legislação impor, sem margem para dúvidas que todos, nacionais e migrantes, com ou sem documentos, podem aceder aos serviços de infeciologia e ao tratamento contra infeções sexualmente transmissíveis, entre muitas outras situações.

Vítor Papão, diretor-geral da Gilead: “É crítico não haver redução de recursos alocados à terapêutica”

 

A situação torna-se ainda mais complicada quando se trata de integrar um migrante num programa PrEp. “Por brincadeira, costumamos diz que o melhor é infetarem-se primeiro para conseguirem a PrEp”, ironizou Luís Mendão, Presidente do Grupo de Ativistas em tratamentos (GAT). Criticando a ausência de uma política clara relativamente à PrEp, Mendão exortou os responsáveis para que “de uma vez por todas”, retirarem as barreiras à implementação deste programa que, afirma, é essencial ao controlo da infeção. “E não acrescenta qualquer custo para o Estado, já que existe um teto de gastos com medicamentos indicados no tratamento do VIH acordado com a Indústria”, assegurou.

Francisco Antunes, Diretor do Instituto de Saúde Ambiental Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e antigo diretor do Serviço de Doenças Infeciosas do Hospital de Santa Maria, salientou por seu lado, a necessidade de se promover investigação nesta área. “Sem investigação não há conhecimento e sem conhecimento, não se chega a lado nenhum”, apontou. Para o especialista em Especialista em Doenças Infeciosas e Medicina Tropical, é necessário que a academia tenha acesso aos dados captados pelos sistemas de informação, como o sistema informático do VIH (SI.VIDA), ao qual, confessou o académico, nunca conseguiu aceder. “Assegurar que os dados estão atualizados, para não acontecer como hoje acontece termos num dado momento a indicação de 500 novos casos num ano e dois anos mais tarde, para o mesmo período o sistema informar que afinal eram 3500. “Assim não vamos lá”, alertou o especialista.

José Vera, Coordenador do Núcleo de Estudos VIH da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna reiterou as preocupações expressas pelos intervenientes anteriores, nomeadamente sobre a necessidade de se terem dados fiáveis disponíveis e alertou para a necessidade de mais recursos, nomeadamente ao nível da Saúde Mental, dada a elevada prevalência de demências nos doentes infetados, mesmo com carga viral indetetável.

Vitor Papão, Diretor-Geral da Gilead Sciences Portugal referiu o papel parceiro da IF, nomeadamente da Gilead, no combate à epidemia e deu o Programa FOCUS como exemplo, no GAT e em Cascais. Apontando o facto de os doentes com VIH estarem a envelhecer, assinalou a necessidade de um maior esforço na investigação para aumentar a qualidade de vida nesta população. Nesta vertente, alertou, “é crítico não haver redução de recursos alocados à terapêutica”. O gestor questionou ainda a coordenadora do Programa Nacional para a Infeção VIH/DSIDA sobre de que forma o 4º 95% estará previsto no Programa. A qualidade de vida dos doentes foi outra das preocupações manifestadas pelo responsável da Gilead, que alertou para a necessidade de um esforço contínuo no sentido da melhoria da qualidade de vida do doente: “não pode haver menos recursos alocados, tem de haver mais”, disse.

MMM

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