3 Out, 2024

USF-AN vai reunir médicos, enfermeiros e secretários clínicos “em defesa dos CSP e SNS”

Ana Ferrão é presidente da comissão organizadora do 15.º Encontro Nacional das USF, que decorre nos dias 18 e 19 de outubro, em Santarém. Em entrevista ao SaúdeOnline, aborda alguns dos temas do evento, como a atual situação das USF modelo B ou as unidades locais de saúde, e espera a presença de todos no evento como forma de se lutar pelo SNS.

USF-AN vai reunir médicos, enfermeiros e secretários clínicos “em defesa dos CSP e SNS”

“Saúde Familiar em Tempos de Mudança” é o tema do Encontro da USF-AN. O que mais vos preocupa?

Quando definimos os temas para o evento surgiu, à partida, a generalização das USF modelo B, pondo fim às quotas para estas USF, já que não está a ter  o  acompanhamento necessário para que essa evolução seja bem sucedida. Seguia-se, inevitavelmente, a expansão das unidades locais de saúde (ULS) a nível nacional, sem que exista evidência científica que o  justifique. De forma mais abrangente quisemos abordar, ainda, as mudanças relacionadas com a evolução da Inteligência Artificial (IA), para se debater e refletir sobre as ameaças e oportunidades desta nova realidade. Além destas três áreas previstas inicialmente no programa, foram pensadas sessões de caráter clínico em temas como diabetes, doença renal crónica e vacinas.

Mas, face às últimas notícias, vai-se falar inevitavelmente de um outro assunto: as USF modelo C. Apesar de previstas na reforma dos cuidados de saúde primários (CSP), ainda não se conhece a sua regulamentação e modelo de avaliação de  desempenho das equipas. Será idêntico ao dos profissionais de saúde do SNS? Devemos discutir quais as vantagens da  criação destas unidades, que levam à transferência de investimento para o setor privado, em vez da sua aplicação na melhoria das condições de trabalho dos profissionais do SNS.

Um exemplo recente deste desinvestimento no SNS é o que está a acontecer no Hospital de Cascais. Esta parceria público-privada vai ficar responsável por dar resposta a 75 mil utentes sem médico de família das ULS Lisboa Ocidental e Amadora Sintra. Estão previstos especialistas em Medicina Geral e Familiar (MGF), mas, na prática, como é que tudo se vai concretizar? O Hospital de Cascais diz ter capacidade instalada para dar resposta a essa população, mas na realidade tem dificuldade no cumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos  noutras áreas. E falta perceber se esta resposta prevê equipas com enfermeiros e secretários clínicos  ou apenas consultas médicas.

 

Relativamente à generalização das USF modelo B, faz sentido ter-se avançado com esta medida sem se garantir o acompanhamento das equipas?

O objetivo defendido pela USF-AN era permitir a transição de todas as USF modelo A para B e que tinham, obviamente, demonstrado condições para o fazer. Aliás, algumas já esperavam dar este passo há alguns anos. As USF modelo B têm na sua constituição regras de avaliação e uma remuneração dependente do desempenho, o que implica maturidade para exercer a sua autonomia e garantir o seu desenvolvimento como equipa. O acompanhamento das equipas é muito importante, sobretudo porque surgiram coisas novas como a obrigatoriedade de adesão ao regime de dedicação plena nas USF Modelo B ou o índice de desempenho da equipa (IDE). No próximo ano, acresce, ainda não sabemos bem como, o índice de complexidade dos utentes (ICU) … São várias alterações que implicam apoio e formação e, hoje em dia, temos unidades que transitaram para modelo B sem qualquer preparação.

 

O problema do IDE deve-se, sobretudo, à questão da avaliação de desempenho com base na prescrição de medicamentos e de MCDT?

O IDE, per si, não tem de ser negativo. Há muitos indicadores, além desses que mencionou, nomeadamente os relativos à qualidade dos cuidados prestados. Não é a primeira vez que se avaliam custos; todavia, anteriormente, essa avaliação associada a outros indicadores servia para atingir incentivos institucionais e não impactava diretamente na remuneração dos profissionais.

O problema dos indicadores de desempenho com base na prescrição de medicamentos e MCDT está, essencialmente, na ponderação que lhes foi atribuída. Esta é uma questão delicada. No evento vamos ter uma sessão sobre diabetes, na qual se abordarão novos fármacos que devem ser usados em primeira linha. Estes são mais onerosos, mas são os indicados segundo as últimas recomendações… Ora, isto vai ter impacto no IDE e, por conseguinte, na remuneração dos profissionais de saúde.

Estou convencida de que os médicos não vão deixar de prescrever os fármacos mais adequados, apesar do possível impacto no salário, mas mesmo assim é preciso discutir a sua ponderação no conjunto dos indicadores incluídos no IDE.

“Esse é um exemplo bem concreto: foi atribuído às ULS a abertura do concurso para recém-especialistas. Mas estes terminaram a formação em maio e muitos ainda não estão colocados…”

 

Relativamente a implementação das ULS referiu de não haver evidência científica suficiente de que  devem ser a opção em todas as regiões. O problema é mesmo essa generalização sem dados concretos ou é o modelo em si?

Nos cuidados de saúde primários (CSP) tínhamos um modelo com provas dadas e que funcionava bem, que previa a extinção das administrações regionais de saúde (ARS). Existem estudos que demonstram as mais-valias das USF modelo B em termos de custos e de qualidade dos cuidados prestados. Infelizmente, não se concretizou a autonomia dos agrupamentos de centros de saúde (AceS)e a evolução do modelo parou.

O problema da generalização das ULS, que já existiam nalgumas regiões, é que não há estudos científicos que demonstrem a sua validade. Os profissionais que estão no terreno queixam-se de não haver validação científica, mas, mais que isso, criticam o facto de não ter existido preparação suficiente para a sua implementação. Isto trouxe grandes problemas  – mais nuns locais do que noutros – no sistema informático, nas remunerações, no fornecimento de material, nos concursos para recém-especialistas, etc.

Esse é um exemplo bem concreto: foi atribuído às ULS a abertura do concurso para recém-especialistas. Mas estes terminaram a formação em maio e muitos ainda não estão colocados… Numa altura em que escasseiam médicos de família, por causa da aposentação, estes jovens ficaram sem receber como recém-especialistas. Não tenho números, mas acredito que vários devam ter desistido do SNS. A Sr.ª Ministra da Saúde já disse que vai alterar este procedimento no próximo ano. Esperemos que sim! As mudanças implicam preparação e isso nem sempre acontece.

 

As ULS têm uma administração conjunta, isso tem trazido problemas em termos de contratualização?

No evento vai ser apresentado, mais uma vez, o Momento Atual. Este ano participaram muitos coordenadores e aí vamos perceber o real impacto na contratualização que, infelizmente, sofreu atrasos e não está sequer concluída em muitos locais.

“Foi-nos pedido para indicar quem deveria ser retirado das listas, para dar lugar a quem vive em Portugal, mas  não é suficientemente claro o que acontece se estas pessoas voltarem”

 

“Acesso a cidadãos estrangeiros” é outra temática do Encontro. Quais os desafios neste campo?

Estes cidadãos têm acesso a cuidados de saúde como os portugueses. E a sessão irá abordar questões ligadas ao seu correto acolhimento. Um dos problemas  é o dos cidadãos inscritos, mas residentes fora de Portugal. Atualmente, com o Registo Nacional de Utentes (RNU) é possível ter acesso a essa informação. É preciso debater este tema, porque há vários que não utilizam os serviços e estão fora do país.

Foi-nos pedido para indicar quem deveria ser retirado das listas, para dar lugar a quem vive em Portugal, mas  não é suficientemente claro o que acontece se estas pessoas voltarem. Outra questão é a ocupação destas vagas, individualmente, sem se ter em conta a família. Se alguém não tem médico há 10 anos, quer obviamente inscrever também os filhos e os cônjuges… Face a tudo isto, como ficam as listas de utentes?

“Vamos ter a apresentação do “Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal”, no qual se ficará a conhecer o que pensam os profissionais sobre os  CSP em 2024”

 

Desviando o olhar para a tecnologia, a IA será mais uma oportunidade ou uma ameaça?

A IA já faz parte da nossa atividade em saúde e é essencial falar sobre este tema para se saber o que é exatamente a IA e qual o seu papel na saúde e na sociedade. Acredito que vá ser um debate muito interessante, que irá contar com a presença do Prof.ª Arlindo Oliveira, do Instituto Superior Técnico, que é especialista nesta área, e com o Dr. Carlos Martins, do MGFamiliar.

 

Que mensagem gostaria de deixar aos médicos, enfermeiros e secretários clínicos?

Convido-os a estarem presentes no Encontro, que, este ano, acontece em Santarém, com o apoio do Município de Santarém e do Instituto Politécnico de Santarém. Vamos abordar muitos temas: USF modelo B, contratualização, liderança e redes colaborativas, IA, acesso de estrangeiros a cuidados de saúde, doença renal crónica, diabetes, vacinação. Haverá, ainda, apresentação de pósteres e comunicações orais sobre projetos desenvolvidos nas unidades funcionais. E vamos ter a apresentação do “Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal”, no qual se ficará a conhecer o que pensam os profissionais sobre os  CSP em 2024. No Encontro contaremos, em particular, com a presença da Sra. Ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e do diretor executivo do SNS, Dr. António Gandra d’Almeida. Em suma, a USF-AN vai reunir todos – médicos, enfermeiros e secretários clínicos – em defesa dos  CSP e  SNS.

Maria João Garcia

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