3 Jan, 2025

“Urge conferir ferramentas aos profissionais de saúde para se desconstruir a hesitação vacinal”

Helena Soares é coordenadora da Formação Avançada em Hesitação Vacinal da NOVA Medical School, que se vai realizar entre 5 e 16 de maio, online, e cujas candidaturas estão abertas até 21 de abril. Em entrevista, aborda a forma como as redes sociais influenciam a não adesão à vacinação, que tem levado ao ressurgir de doenças.

Porquê uma formação sobre hesitação vacinal?

A seguir à água potável, a vacinação é a intervenção em saúde que mais vidas salva a nível mundial. Para que as vacinas salvem vidas é necessário que as mesmas sejam administradas. E é aqui que surge a hesitação vacinal. Um relatório mundial (2021) aferiu que 32% dos adultos, o que equivale a 1.3 biliões de pessoas, não estavam predispostos a serem imunizados gratuitamente contra a covid-19, constituindo um obstáculo à imunidade de grupo.

A hesitação vacinal define-se, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), como um atraso na aceitação ou recusa na vacinação, apesar da mesma estar disponível. Em 2019, a hesitação vacinal foi identificada pela OMS como uma das maiores dez ameaças à saúde global por “ameaçar reverter o progresso feito na debelação de doenças preveníveis por vacinação”.

Isto é preocupante, porque ao impedir que se atinja a imunidade de grupo, a hesitação vacinal promove a ressurgência de doenças que se julgavam debeladas, como o sarampo. Os surtos de sarampo que se verificam, atualmente, são maioritariamente por pessoas que não foram vacinadas, colocando em risco a si próprias, mas também os bebés menores de 1 ano, que ainda não atingiram a idade para serem vacinados. Tendo em conta os riscos para a saúde pública, urge conferir ferramentas aos profissionais de saúde para que estes possam desconstruir a hesitação vacinal.

 

Em Portugal já se nota mais pessoas que não querem vacinar-se?

Embora os dados nacionais sugiram uma forte adesão à vacinação, começam a surgir “clusters” locais de crianças não vacinadas. De um modo ainda mais alarmante, estudos recentes mostram uma preocupação crescente por parte dos pais acerca da calendarização e segurança das vacinas pediátricas. Estamos então perante uma oportunidade para renovar a educação, o diálogo e a construção de consensos no que respeita à valorização das vacinas.

“… a hesitação vacinal tem surgido, em certa medida, como um efeito colateral do sucesso da vacinação”

Em que tipo de vacinas?

A resposta a esta pergunta é mais complexa do que inicialmente possa aparentar. Se analisarmos o fenómeno da hesitação vacinal, retrospetivamente vemos que o mesmo esteve presente ao longo da história da vacinação. Aliás, podemos mesmo dizer que a oposição à vacinação antecede mesmo a introdução da primeira vacina por Edward Jenner. No século XVIII, Cotton Mather teve de defender o processo de variolação de críticas que o mesmo era mais deletério que a varíola em si. Como os programas de vacinação contra a varíola contribuíram para um tremendo declínio na incidência de doença, o questionamento inicial sobre o efeito deletério da vacina evoluiu.

No início do século XX, o que se questionava era a necessidade de continuar a vacinar. Esta lógica deturpada, em que inicialmente a objeção por sectores da população é apontada aos possíveis efeitos deletérios das vacinas, evolui, uma vez mostrada a eficácia, para uma objeção à continuidade, tem sido aplicada desde então a várias vacinas. Ou seja, a hesitação vacinal tem surgido, em certa medida, como um efeito colateral do sucesso da vacinação.

Como resultado da aplicação de programas e campanhas de vacinação, várias doenças infeciosas e os seus efeitos deletérios têm-se tornado menos visíveis. Com o passar do tempo, pacientes, pais e até profissionais de saúde têm muito pouco conhecimento sobre as doenças que as vacinas previnem. Este desconhecimento dificulta o discernimento dos benefícios das vacinas, enquanto os riscos, incluindo os riscos alegados e mesmo demonstradamente falsos, se tornam paradoxalmente mais visíveis.

Não obstante, parece incontornável que a pandemia de SARS-CoV-2 e o desenvolvimento aparentemente rápido (não o foi, as vacinas de RNA levaram mais de 30 anos a serem desenvolvidas) das vacinas contra a covid, conjuntamente com o que foi entendido como mandatos de vacinação, levaram a um aumento da contestação à vacinação. No início de 2021, 56% dos portugueses hesitavam e 9% recusavam ser vacinados contra o vírus SARS-CoV-2.

Qual o perfil destas pessoas?

Contornando as limitações que este tipo de perfis apresenta, foram desenhados cinco perfis de hesitantes vacinais. Estes incluem pessoas que procuram a sua informação médica de forma independente, muitas vezes recorrendo às redes sociais e a opiniões de “wellness influencers”, cépticos preocupados, pessoas indiferentes, apoiantes cautelosos e apoiantes reluctantes da vacinação. Para cada um destes perfis, a intervenção para contrapor a hesitação vacinal será necessariamente diferente.

“As mensagens veiculadas pelos ‘wellness influencers’ variam entre infundamentadas interpretações enviesadas de estudos científicos até à propagação de teorias da conspiração”

De que forma as redes sociais têm contribuído para a hesitação vacinal?

Historicamente, os movimentos que questionavam a vacinação exerciam a sua influência em grupos locais. Pensa-se que a transição da hesitação vacinal de um contexto local para um contexto nacional ocorreu pela primeira vez em 1982, nos Estados Unidos da América, aquando da transmissão televisiva do documentário “DPT: Vaccine Roulette” sobre a vacina para a difteria, tétano e tosse convulsa. Progressivamente, assistiu-se a um nivelar por igual entre perceções pessoais e os factos científicos veiculados pelas autoridades de saúde.

As redes sociais catapultaram esta tendência para dimensões previamente inimagináveis. A informação é partilhada com maior velocidade e para maior número de destinatários. As redes sociais, para além de colocarem em contacto indivíduos e grupos isolados de hesitantes vacinais, criaram a figura do ‘wellness influencer’. No que diz respeito à sua saúde, 33% dos jovens adultos depositam mais confiança na informação prestada pelos ‘wellness influencers’ do que pelos médicos. O discurso dos ‘wellness influencers’ é estruturado de forma a explorar de modo eficiente o nosso desejo comum de conhecimento e controlo num mundo cada vez mais caótico ao recorrer a palavras-chave como empoderamento do paciente e literacia política.

As mensagens veiculadas pelos ‘wellness influencers’ variam entre infundamentadas interpretações enviesadas de estudos científicos até à propagação de teorias da conspiração sobre a indústria farmacêutica e as vacinas. Na internet, factos científicos sobre a vacinação convivem lado a lado com informações fictícias numa luta desigual, tendo em conta que os algoritmos favorecem a disseminação de mensagens simples com maior potencial em se tornarem virais. Embora o processo científico não seja livre de falhas – e neste campo a publicação na Lancet do estudo, entretanto retratado, sobre vacinação e autismo surge como o exemplo mais infame -, este continua a ser o maior guardião da validação e disseminação de factos científicos válidos e socialmente responsáveis.

 

De que forma os profissionais de saúde devem lidar com a hesitação vacinal?

Cientistas sociais e biomédicos têm-se debruçado sobre esta questão há anos. Algumas técnicas validadas incluem a escuta ativa do paciente, o favorecimento da troca de informação sem juízo de valor, o cultivo de entrevistas motivacionais e o recurso a metáforas. Estas técnicas irão ser ensinadas no Curso Avançado em Hesitação Vacinal da NOVA Medical School, que decorrerá em maio de 2025, em formato online.

MJG

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