10 Ago, 2020

Internamento na Unidade de Alcoologia de Lisboa em “morte lenta”

O serviço encerrou em março devido à pandemia e a Administração Regional de Saúde de Lisboa diz que está em estudo modelo de reabertura.

Bruno Rego, 37 anos, deu entrada naquela unidade no dia 12 de junho de 2013, uma data inesquecível, que se tornou mais importante do que a do seu aniversário, porque se não tivesse dado esse passo “já não estava cá”.

Em recuperação há sete anos, explicou que as pessoas “saem diferentes” do internamento porque, apesar de serem apenas quatro semanas, além do método de tratamento, “em que a pessoa faz a desintoxicação química”, inclui também o acompanhamento psicológico para que “consiga manter a sobriedade cá fora”.

Além disso, “é o único serviço em que a pessoa dá entrada e não paga um cêntimo”, o que é “muito importante porque as pessoas chegam falidas”, referiu, contando que se não fosse os pais na altura estaria a viver na rua.

 

Utentes receiam que serviço encerre

 

Por isso, os utentes receiam que o serviço acabe. “Mais tarde ou mais cedo é o que vai acontecer”, lamentou.

Este receio é partilhado por Fernando S., de 57 anos e utente há 23, desde 1997. Internado duas vezes, disse ter criado “muitas raízes” naquele local para onde encaminha pessoas com problemas de álcool, que cada vez são mais, principalmente mulheres.

“O método que é utilizado para a doença que eu padeço, que é o alcoolismo, é completamente diferente das outras instituições que estão sediadas no Parque da Saúde, em Lisboa, nomeadamente o Centro das Taipas e a Unidade de Tratamento e Recuperação de Alcoólicos”, explicou.

Nestas instituições, “trata-se a ressaca e faz-se o tratamento à base de benzodiazepinas e calmantes e põem-se as pessoas na rua ou encaminham-nas para comunidades terapêuticas, enquanto na Unidade de Alcoologia são 28 dias de internamento e depois cria-se uma rede de proteção.

Fernando recordou que de “um dia para o outro” deixou de conseguir parar de beber e as “bombas de gasolina eram o seu bairro”, onde comprava garrafas de uísque às quatro da manhã.

Na unidade encontrou um porto de abrigo e “uma excelente equipa terapêutica” que dá “um apoio maravilhoso e gratuito. Isto é único”.

Ali aprendeu a “lidar com uma série de situações, com sentimentos, com emoções”, razões pelas quais bebia e pela quais precisa de continuar a ter apoio.

Fernando recordou que as instalações foram doadas pela Fundação Calouste Gulbenkian para tratamento exclusivo de alcoólicos, “mas as coisas nos últimos anos têm vindo a piorar” devido à falta de recursos humanos.

“Há uma morte lenta da unidade”, lamentou Fernando, que está sem beber há 10 anos.

Jorge começou a beber ainda jovem, um vício que se manteve até aos 46 anos. Hoje, com 50 anos, diz ser “um caso feliz”.

“Não estou livre de amanhã começar a beber, porque isto é para a vida toda, mas deram-me as ferramentas para perceber qual é meu problema e aceitar-me como sou”, afirmou Jorge, com orgulho.

Jorge acrescentou que conhece pessoas que neste momento precisam de ser internadas. “Alguns deles já desistiram, e continuam a estragar a saúde mental e física, porque os tratamentos são caros” e a unidade fechou devido à pandemia.

Paulo Inácio, 53 anos, deu entrada naquela unidade há três anos. Recordou que quando esteve internado “só estavam mais dois ou três utentes porque não havia pessoal auxiliar e não podiam internar mais pessoas”.

“Passados uns tempos não havia enfermeiros, e esta situação já acontece há alguns anos”, relatou Paulo Inácio, destacando a importância deste centro: “entrei um farrapo e sai de lá um homem melhor de que alguma vez fui na vida”.

“Tenho uma gratidão para o resto da vida com aquelas pessoas que me trataram, porque mudaram a minha vida”, salientou, considerando que “fechar aquela casa é um crime”.

Numa resposta à agência Lusa a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, afirma que, apesar da pandemia, “tem existido uma grande preocupação e atenção às situações de dependência alcoólica, não só pela gravidade do quadro clínico, mas também pela situação de vulnerabilidade e de disrupção social que muitos utentes estão a viver de novo, que exige cuidados ao nível do apoio social, o que tem sido assegurado através da articulação entre os nossos serviços e outras estruturas da comunidade, sejam públicas, sejam IPSS”.

Ainda neste período, afirma, a equipa daquela unidade, “atenta à situação das pessoas em situação de sem-abrigo com síndrome de privação alcoólica por força da impossibilidade de adquirir bebidas resultante da perda de rendimentos, desenvolveu, em estreita articulação” com a equipa da Câmara de Lisboa, uma intervenção nos vários espaços de abrigo temporário, disponibilizados pela autarquia.

A ARSLVT assumiu, nesse contexto, o fornecimento dos medicamentos necessários através da sua Unidade Orgânica e Funcional de Farmácia.

SO/LUSA

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