FALSA CIÊNCIA – REFLEXÕES AVULSAS III – O porquê
Médico de Família

FALSA CIÊNCIA – REFLEXÕES AVULSAS III – O porquê

“(…) os mitos têm o condão de nunca morrer por serem mais cativantes que a realidade” – Onésimo Almeida

“(…) e os filósofos sentiam-se no direito de ordenar aos matemáticos que provassem que todo o movimento no céu era circular (…) e que demonstrassem que a Terra é o centro é o centro (…)” – David Wootton

VIII. Se é fácil de entender o que move os fundamentalismos religiosos, as ideologias totalitárias e os agentes económicos que abraçam o obscurantismo e constroem falsas ciências, já a sua popularidade entre a sociedade civil e mesmo as incursões no próprio mundo científico serão mais difíceis de explicar. Essa é tarefa para sociólogos, psicólogos, filósofos ou especialistas da mente. 

Todavia, há uma causa comumente aceite: o desfasamento entre a inata aspiração humana às certezas absolutas e a realidade última das coisas que é, em última análise, inalcançável pela mente humana. Dito doutro modo: a potência da ciência fica muito aquém das fantasiosas aspirações do nosso pensar. Para fugir à angústia da incerteza é mais cómodo recolher ao porto de abrigo da autoridade da verdade revelada, que oferece respostas simples e inabaláveis. Este populismo epistemológico proporciona explicações descomplicadas, ainda que ilusórias, ao desassossego ontológico inerente à impossibilidade de tocar o extremo do real, o absoluto da verdade. A ciência propõe-se como método para lidar com a ansiedade decorrente dessa intangibilidade. A falsa ciência, pelo contrário, prefere mergulhar na galhardamente na ilusão do saber completo. Como a ciência não nega a intangibilidade da realidade, assume forçosamente as suas limitações e, como consequência, diminui a sua atratividade. 

  1. Mesmo sem querer demorar-se mais neste tema, ou resvalar para domínios para os quais não está habilitado, sempre arrisca o autor divagar sobre o que lhe parece ser uma peculiaridade do mundo das falsas ciências e do obscurantismo. Chamemos-lhe o paradoxo do ceticismo. 

O ceticismo é ingrediente fundamental do método científico. Não aceitar “verdades estabelecidas” é ponto de honra. Tudo deve ser verificado e, no limite, nada é definitivamente verdade em ciência. Curiosamente aqui reside a armadilha do ceticismo, porque ceticismo sem limites cai no farisaísmo e na crendice mais naive. Há que realçar que entre este ceticismo farisaico, que é ilegítimo, e um ceticismo radical que é absolutamente lídimo, há uma fronteira, embora por vezes pouco percetível. 

Comecemos por um exemplo do ceticismo radical, legítimo. O resultado da soma de duas unidades com duas unidades é inequivocamente quatro unidades o que qualquer um pode verificar ser verdade com toda a facilidade. Só é possível negá-lo por loucura, brincadeira ou má fé. No entanto, provar que da soma de dois milhões de unidades com outras dois milhões resultem quatro milhões é virtualmente impossível de provar recorrendo a idêntico modo ao que usámos para comprovar a verdade na operação no exemplo anterior. Só nos finais do séc. XIX, os matemáticos, não conformados por esta dúvida, conseguiram comprovar a consistência da aritmética. Com este exemplo se mostra a radicalidade da ciência na busca da verdade, que recusa aparências e facilitismos e, portanto, a solidez das suas demonstrações. 

Para contrapormos um exemplo de farisaísmo, acompanhe-me agora o leitor num périplo por terras de Vera Cruz e vamos conhecer o autor de várias obras, Olavo de Carvalho, guru popular entre vários elementos do governo Bolsonaro e com ampla audiência entre a sociedade civil brasileira. Este autodidata é um campeão da falsa ciência: fã do movimento antivacinas, nega a transmissão do vírus da SIDA entre heterossexuais, é defensor do armamentismo civil, denunciou Galileu, Newton e Cantor como charlatães e, em 2016, assumiu o seu ceticismo em relação ao heliocentrismo! (*) “Convivo bem com a dúvida” justificou-se. 

Eis o ceticismo levado ao paroxismo e elevado ao patamar do paradoxo. Ao contestar o heliocentrismo e rejeitar toda o acumular de confirmações, desde Copérnico até aos nossos dias, têm sedimentado a sua validade é, curiosamente, acreditar numa teoria – geocentrismo – que nunca conseguiu uma só prova, mau grado os esforços de muitos filósofos e teólogos ao longo da Idade Média europeia. É trocar uma teoria sólida por uma crença, é a antítese do ceticismo … em nome do ceticismo! Isto não é ceticismo: é bacoquismo. O ceticismo legitimamente radical não se pode confundir com parvoíces. Se já durante a Idade Média o geocentrismo era de difícil defesa, recorrendo-se a argumentos de autoridade para o manter vivo, é espantoso que nos dias de hoje haja autointitulados intelectuais que se recusem a aceitar teorias verificadas e reverificadas, substituindo-as por ideias totalmente desacreditadas e que, como tal, só deveriam sobreviver como curiosidades históricas.

Quer dizer: no exercício do ceticismo sem limites mora a justificação do fanatismo mais irracional e o obscurantismo mais irredutível ao ceticismo. O exemplo mais ridículo (ou tenebroso, porque é prova aonde pode chegar o sectarismo e a cegueira do ser humano) é o da Terra plana. É de abismar que esta moda, com cada vez mais adeptos entre classes diferenciadas, proponha um modelo cosmológico tão tosco, que provocaria um sorriso de desdém a qualquer sábio caldeu de segunda ordem. 

O mesmo se pode dizer, para regressarmos às questões de saúde, dos movimentos antivacinas, negacionistas, diversas “medicinas” alternativas, criacionistas, etc. Todos argumentam ceticismo irredutível face às teorias científicas “estabelecidas”, mas contrapondo narrativas apoiadas por argumentos de autoridade sem qualquer base científica.

Em resumo: de ferramenta imprescindível à Ciência o ceticismo pode transmutar-se em arma do obscurantismo e em solo fértil para falsas ciências.

(*)https://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2019/04/ciencia-brasileira-tera-vez-no-governo-bolsonaro.html

Adenda: este artigo foi escrito antes da atual pandemia ter entrado na fase de avassaladora expansão em que se encontra. Na altura, eu próprio não previa que os riscos da falsa ciência, ao inquinarem o mundo da política, teriam consequências desta magnitude. Vidé: Bolsonaro, Trump e Boris Jonhson.  

 

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