FALSA CIÊNCIA – Reflexões avulsas II
Médico de Família

FALSA CIÊNCIA – Reflexões avulsas II

“(…) à classe dos tiranos agradam as riquezas malganhas

Sófocles

“(…) an extensive and organized campaign intended to generate distrust in science, funded by regulated industries and libertarian think tanks whose interests and ideologies are threatened by the findings of modern science.”

Noami Oreskes

 

III- Como ficou dito na anterior crónica, a visão totalitária judaico-cristã fundamentou o obscurantismo vigente na Europa durante mais de um milénio. Mas é evidente que o princípio da autoridade da verdade revelada não é exclusivo do cristianismo ou de outras religiões, nomeadamente das outras confissões do Livro. Para as ideologias autoritárias serve-lhes às mil maravilhas. Recordemos Salazar: “Não discutimos Deus e a virtude; (…); não discutimos a autoridade e o seu prestígio (…)”. Os poderes políticos autocráticos, mesmo os baseados em ideologias militantemente ateias, encontram neste princípio um instrumento fundamental para a sua legitimação e continuidade do seu poder. Os ideários antidemocráticos são naturalmente incompatíveis com o livre pensamento e, portanto, convivem mal com o método científico e pessimamente com a filosofia. Mas não quer isto dizer que exista uma relação linear inversa entre o conhecimento científico e o rigor destas ideologias. Desde que úteis aos seus propósitos políticos aceitam-no, mas com a condição de não colidirem com os respetivos dogmas ideológicos e de o poderem controlar.

Tomemos como exemplo a relação do regime nazi com a física. Muitos eminentes físicos germânicos, ou naturais de países ocupados, foram perseguidos e/ou fugiram (Einstein, Goddel, Schrodinger, Bohr). Outros optaram por ficar (Max Planck) e outros ainda, para além disso, contribuíram para o esforço de guerra (Heisenberg, von Braun). Entre os que ficaram questionou-se a aceitação da teoria da relatividade, acabando-se por reconhecer a sua validade, mas decidindo-se apagar o nome do “judeu Einstein” – um compromisso pragmático entre o espírito científico (que aceitou a teoria) e a interferência ideológica, (que apagou o nome do autor). Assim, a física pode progredir na Alemanha durante a guerra. Já o maoísmo, menos pragmático, rejeitou a teoria da relatividade, entre muitos capítulos do conhecimento, sob pretexto de ser um “reflexo da ideologia burguesa e reacionária do Ocidente”. Mao instituiu um dos mais obscurantistas regimes do século XX, sobretudo durante a chamada “Revolução Cultural”. Também a URSS nunca teria sido a pioneira na exploração espacial se se tivesse intrometido no desenvolvimento da matemática ou da física. Mas nem todas as disciplinas científicas tiveram a mesma sorte durante o estalinismo. Lyssenko reescreveu a genética, “proletária”, contra a chamada “versão burguesa”, aceite por toda a comunidade científica. Após a viragem ideológica corporizada durante o XX Congresso do PC da URSS esta espúria teoria seria denunciada.

Como seria de esperar as ideologias totalitárias tendem a desvirtuar a produção de conhecimento e controlar a sua divulgação.

Aliás, em alguns países com regimes democráticos, a ascensão de ideologias antidemocráticas tem-se vindo a acompanhar de ofensivas obscurantistas. O

presidente Bolsonaro suprimiu alguns milhares de programas de mestrado e doutoramento em áreas consideradas sem “retorno imediato” (leia-se: não compatíveis com a visão fascizante e fundamentalista evangélica que lhe é conhecida) e renega liminarmente diversos dados científicos solidamente fundamentados; Orban encerra universidades; Erdogan prende professores universitários; Salvini insurgiu-se contra as vacinas de forma grotesca; Trump não tem pejo em desmentir a comunidade científica opondo-lhe o negacionismo, no que é acompanhado pela generalidade dos lideres com pretensões totalitárias.

Para além, duma desconfiança intrínseca em relação ao conhecimento, e ao livre pensamento que lhe está associado, por vezes existem razões suplementares para que os poderes políticos neguem a validade da ciência: a proteção de atividades económicas espúrias. Neste particular o negacionismo climático é paradigmático.

Mas chegados a este tema somos forçados a admitir que a fronteira entre as posturas de governos democráticos e dos totalitários se esbate.

Se é verdade que nas ditaduras onde, apesar do contexto de interferência no conhecimento, algumas disciplinas científicas são, não só toleradas, mas mesmo acarinhadas, também é verdade que nos regimes políticos democráticos o livre pensamento não garante, só por si, um ambiente saudável para o desenvolvimento da ciência. Embora estes regimes se coíbam de exercer censura direta na área da ciência, a verdade é que são permeáveis ao desenvolvimento de falsas ciências e os governos não têm pejo em lhes garantir respeitabilidade ou minar de forma subtil a credibilidade do conhecimento científico. A este propósito, e cingindo-nos aos cuidados de saúde, recordemos que na Grã-Bretanha ou na Alemanha a homeopatia tem honras de comparticipação pelos respetivos SNS.

  1. Na sequência do que foi dito há que apresentar os próximos clientes da falsa ciência e duma sofisticada versão da verdade revelada: são eles os agentes económicos. Os lóbis dos combustíveis fósseis, o NRA dos EUA, representando a indústria e retalho das armas, a agropecuária intensiva, a Big Tobacco, as “medicinas” alternativas, etc., etc.. Os agentes económicos têm o condão de nivelar a postura de democracias e ditaduras, diferenciando-as pela hipocrisia. Dos primeiros, sublinhe-se.

Como exemplo paradigmático no domínio da saúde poucos terão sido tão eficazes e tenazes na substituição do conhecimento científico por mentiras como a indústria tabaqueira. Infiltrada com muito sucesso nos meios políticos, nos midia, nos meios artísticos e até na classe médica (felizmente com influência em fase minguante) tem combatido tenazmente a ciência.

  1. Tão curiosa como perturbadora é a constatação que há falsas ciências, em crescendo de popularidade, sem qualquer mais-valia ideológica ou económica, isto é, sem que nenhuma forma de poder religioso, político ou económico delas tire proveito. Pode concluir-se que o obscurantismo também viceja entre a sociedade civil de geração espontânea, pululando por aí falsas ciências para vários gostos. Seria de esperar que a evolução do conhecimento e o crescendo em extensão e sofisticação da escolaridade, associado à democratização, empurrasse a falsa ciência e obscurantismo para o rol das curiosidades históricas. Contudo, não é essa a realidade. As falsas ciências estão fortemente implantadas, independente do nível cultural dos povos e da democraticidade dos regimes.

Os EUA constituem um caso particularmente desconcertante. Muito difícil será citar país onde a ciência e a tecnologia mais tenham contribuído para o seu poderio e prestígio e que sejam tão acarinhadas. Todavia, em mais nenhum país evoluído as fake sciencies são tão crescentemente populares e estão tão entrincheiradas na sociedade civil: movimento antivacinas, a promoção da proliferação de armas entre a população civil (NRA), Terra plana, negacionismo da responsabilidade da atividade humana nas alterações climáticas, criacionismo, supremacismo branco, etc.

Estas falsas ciências são filhas do novo tipo de obscurantismo: o obscurantismo dos iluminados. São cidadãos com nível cultural razoável, quando não elevado, que aderem a uma ou várias formas de falsa ciência em modo de militância. Porém, o seu modo de pensar é baseada no princípio da verdade revelada, na fé, quer tenham origem no fundamentalismo religioso (criacionismo) ou lhe sejam alheias (antivacinas).

  1. Mais perturbante ainda será constatar até onde chega a “penetrância” das falsas ciências. Rutherford, prémio Nobel e verdadeiro fazedor de prémios Nobel (onze dos seus discípulos foram laureados!) permitiu que a esposa o entregasse aos cuidados de um naturopata para tratar uma hérnia umbilical estrangulada. O rigor metodológico era-lhe proverbial e, no entanto, deixou-se embarcar no canto da falsa ciência, o que lhe custou a vida (Oritt). Será caso para dizer: no melhor pano cai a nódoa.

Na década do século passado um memorando do Institute of Medicine (US) Committee on Quality of Health Care in America agitou o mundo médico ao afirmar que a iatrogenia era a 3ª causa de morte nos EUA. Embora artigos posteriores tenham vindo esfrangalhar a fiabilidade metodológica deste memorando, a verdade é que continuou a merecer honras de verdade inquestionável com dezenas de milhares de citações. Já as publicações que puseram a nu os erros metodológicos e incongruências do memorando foram esquecidas (*). Este episódio é bem mais significativo e preocupante.

VII. Resumindo: As falsas ciências têm como adeptos principais as religiões, as ideologias totalitárias e os agentes económicos por motivos facilmente compreensíveis. Delas necessitam para distorcer a realidade e legitimar-se. Contudo, o entusiasmo pelas falsas ciências não se limita a estes atores: está difusamente difundido, o que é muito inquietante.

 (*) https://www.medscape.com/viewarticle/917696?nlid=131500_430&src=WNL_mdplsfeat_190910_mscpedit_fmed&uac=113723MT&spon=34&impID=2089793&faf=1

– Orrit, Roger “Rutherford – O Núcleo Atómico” National Geographic Edição Especial, 2012

 

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