“Este evento é uma oportunidade de, em dia e meio, se revisitar as guidelines da ESC”
Lino Gonçalves, cardiologista, é o responsável pelo What’s New in 2024’ESC Guidelines. Em entrevista, fala sobre a importância do evento, mas também tece algumas considerações sobre o flagelo atual das doenças cardiovasculares.

Como surgiu a ideia de se organizar este evento sobre as guidelines da ESC?
Discutimos, todos os anos, as guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC, na sigla em inglês), sobretudo no Congresso Português de Cardiologia. Contudo, como este evento decorre, regra geral, na primavera de cada ano, apenas são discutidas as orientações do ano transato. Dada a importância destas guidelines, considerou-se que era preciso haver um espaço de partilha e discussão interpares mais perto do seu lançamento. A nossa reunião realiza-se em outubro, para que os oradores tenham cerca de 2 meses para ler os novos documentos da ESC e para poderem apresentar as novidades e esclarecer os colegas.
Felizmente, temos contado sempre com a presença dos presidentes dos comités das guidelines, que têm um conhecimento mais aprofundado do que foi escrito. Este ano também teremos connosco dois nomes bem conhecidos a nível mundial: Wael Jaber, da Cleveland Clinic, que falará sobre imagem na síndrome coronária crónica; e o Prof. Bernard Gersh, da Mayo Clinic, que fará a conferência de encerramento.
Este ano vão dar destaque à hipertensão (HTA), fibrilhação atrial (FA) e síndromes coronárias crónicas. Porquê estas patologias?
Não é exequível falar de todas as guidelines lançadas em 2024, porque a discussão em torno das novas orientações tornar-se-ia obrigatoriamente superficial. As três que foram selecionadas este ano são, de facto, muito importantes na prática clínica, daí a nossa opção. A HTA é um problema de saúde pública relevante em Portugal – e não só – e, neste encontro, teremos a oportunidade de discutir as guidelines da ESC, confrontando-as com as da Sociedade Europeia de Hipertensão (ESH). Para tal, contaremos com a presença da Presidente da Sociedade Portuguesa de HTA, Dr.ª Rosa de Pinho. Acreditamos que vai ser, com certeza, um momento importante do encontro e de esclarecimento destas duas visões.
A FA é outra epidemia do século XXI e, por isso, é fundamental discutir a mesma quer com cardiologistas quer com outros colegas de Eletrofisiologia, Medicina Interna e Medicina Geral e Familiar. No caso das síndromes coronárias crónicas, têm sido publicados estudos que, de alguma forma, trouxeram mais informação a esta área. Será, pois, importante fazer o ponto de situação atual. Para cada uma dessas patologias contaremos também com a participação dos peritos nacionais, nas respetivas áreas, para obter uma discussão de alto nível.
Relativamente às guidelines das HTA, o que gostaria de destacar?
Prefiro guardar para o evento … [sorri]. Os colegas terão de se deslocar à subunidade 3 da FMUC, em Coimbra, para as ouvir em primeira mão [sorri]!
“Temos, habitualmente, a tendência de simplificar – é preciso ser eficaz em termos pedagógicos –, mas a PA, como qualquer outro fenómeno biológico, é uma variável contínua”
Mesmo não desvendado um pouco do que vai ser dito, concorda com o Prof. Evoy quando diz que nos “afastámos da HTA para a pressão arterial (PA) elevada e HTA para refletir que o risco cardiovascular atribuível à PA está numa escala de exposição contínua e não binária de normotensão vs HTA”?
Sim, concordo. Temos, habitualmente, a tendência de simplificar – é preciso ser eficaz em termos pedagógicos –, mas a PA, como qualquer outro fenómeno biológico, é uma variável contínua. Isso exige que nos preocupemos com todo o espectro da variabilidade da PA, no sentido de se tentar corrigir esta verdadeira epidemia – quer da HTA, quer da doença aterosclerótica e, eventualmente coronária, e do AVC – uma das principais causas de morte em Portugal. A PA é extremamente relevante, como o demonstram as estatísticas europeias; aliás, o nosso país tem uma prevalência de AVC superior ao que é comum num país do sul da Europa. E isso deve-se, nomeadamente, aos níveis de PA, que não estão suficientemente bem controlados.
E porque não existe esse controlo?
Existem múltiplos fatores que são conhecidos, como os que dizem respeito a estilos de vida menos saudáveis, mas também gostaria de realçar o que denomino de ‘cultura do mais ou menos’, isto é, aqueles doentes que costumam ter uma PA de 150/90 mmHg e que consideram que não têm qualquer problema. “A minha PA está mais ou menos”, dizem. Outro problema é a descontinuação da medicação sempre que o doente se sente melhor: infelizmente, as pessoas continuam a olhar para a HTA como se fosse uma constipação. Só se toma o medicamento, quando não se está bem. É preciso apostar-se mais na melhoria da literacia em saúde para que a população perceba que: 1) os medicamentos devem ser tomados como prescritos pelo médico; 2) e que esse esforço é para toda a vida. Por outro lado, os médicos também prescrevem, por vezes, doses subterapêuticas por causa do receio dos efeitos secundários, além de não darem sempre a devida atenção aos doentes ‘borderline’.
A inércia terapêutica acontece sobretudo nos casos ‘borderline’?
Sim, mas nem sempre. Quando se fala em inércia terapêutica não podemos esquecer também as doses subterapêuticas, que não permitem que se atinja os valores-alvo, e a manutenção contínua do controle tensional para o futuro.
“Somos completamente apologistas da integração de cuidados! Faz todo o sentido que assim o seja, porque os colegas especialistas de Medicina Geral e Familiar (MGF) têm uma cultura de proximidade”
Essa continuidade de cuidados é um dos grandes desafios que os médicos enfrentam na prática clínica, já que vos falta tempo para estar com os doentes?
Sem dúvida! É uma luta! O primeiro passo é ter consciência de que este seguimento contínuo é para sempre. A falta de literacia da população – e quiçá de alguns profissionais de saúde – é um problema. Mais de 50% da população europeia, e também norte-americana, tem níveis de literacia em doenças cardiovasculares pouco adequadas. Em Portugal, dever-se-á mesmo ultrapassar os 50%… É preciso formar, mas não apenas uma vez. Todos os anos temos que reforçar a mensagem. É um esforço esmagador, mas tem de ser realizado e depois continuado no tempo. E devemos começar com as crianças. Porquê? Primeiro, porque serão os adultos do futuro; segundo, porque está demonstrado, cientificamente, que os mais pequenos influenciam os comportamentos do agregado familiar em casa. Em Portugal, temos o exemplo, muito bem-sucedido, da reciclagem. Foram, os mais pequenos que levaram esse hábito para dentro de casa. A educação para a saúde é uma questão complexa, mas não podemos ficar de braços cruzados.
Um dos grupos-alvo deste evento é o médico de família. Como cardiologista, considera que deveria ser criada uma consulta de HTA ou de risco cardiovascular em todos os agrupamentos de centros de saúde?
Claro que sim, tendo em conta que a doença cardiovascular é a principal causa de morte na Europa. Mas é também essencial falar-se da integração de cuidados (hospitalares e primários). Em Coimbra, já trabalhamos há uns anos no sentido de se ter um percurso integrado – não é algo que surgiu apenas com a criação da nossa unidade local de saúde. Somos completamente apologistas da integração de cuidados! Faz todo o sentido que assim o seja, porque os colegas especialistas de Medicina Geral e Familiar (MGF) têm uma cultura de proximidade que não é própria do hospital. O médico de família é a primeira linha nas mais diversas patologias e pode, assim, identificar situações que exijam apoio mais diferenciado. Dever-se-ia apostar mais na jornada do doente (patient journey): sempre que necessário se encaminha para o hospital, mas, depois, o utente volta aos cuidados de saúde primários. Nesta jornada, o doente é de facto o centro do processo e faz este trajeto de forma tranquila e segura, porque todos os intervenientes (hospitais, centros de saúde e doentes) sabem o que vai acontecer em cada etapa do tratamento. Isso transmite uma enorme segurança e confiança ao doente.
“É fundamental para a nossa prática clínica conhecer as mais recentes orientações diagnósticas e terapêuticas”
Os idosos são, atualmente, outro grande desafio que têm de enfrentar, face ao envelhecimento populacional?
Sim, de facto temos uma população muito idosa na Cardiologia. Na região Centro, esse envelhecimento é muito notório. É um grupo de doentes muito particular, pelas suas características biológicas intrínsecas e pela sua fragilidade, mas também pela necessidade de um apoio multidisciplinar. Além disso, têm determinadas especificidades diagnósticas e terapêuticas. Por exemplo, é preciso ajustar as doses… Na Faculdade de Medicina de Coimbra já temos, inclusive, um Mestrado em Geriatria, que contempla, entre outras, as doenças cardiovasculares.
Para terminar, que mensagem gostaria de deixar aos participantes?
Este evento é uma oportunidade única de, em dia e meio, se revisitar as guidelines da ESC, que foram publicadas este ano, e de ouvir o que têm para nos dizer os responsáveis pela elaboração das mesmas. É fundamental para a nossa prática clínica conhecer as mais recentes orientações diagnósticas e terapêuticas.
MJG
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