18 Jun, 2020

Entrevista. “Queixas que recebemos indicam que ‘burnout’ é um problema frequente”

O Dr. Pedro Norton, médico de Medicina do Trabalho e Diretor do Serviço de Saúde Ocupacional do Hospital São João, diz que este problema é "transversal" a todos os profissionais de saúde em Portugal.

No Dia Mundial do Médico, que se assinalou a 18 de junho, especialistas reuniram-se num webinar para debater os principais desafios que a classe médica tem enfrentado durante a pandemia.

Em entrevista ao SaúdeOnline, o Dr. Pedro Norton, médico de Medicina do Trabalho e Diretor do Serviço de Saúde Ocupacional do Hospital São João, aborda este problema “transversal” a todos os profissionais de saúde em Portugal.

Em relação ao Hospital de São João, foi feita uma avaliação deste sentimento de “burnout”. Que conclusões tiraram dessa avaliação?

A avaliação de riscos Psico-sociais é uma das atividades mais importantes de um serviço de saúde ocupacional, atendendo a elevada exposição destes profissionais de saúde a este tipo de riscos. Desde logo o trabalho noturno, por turnos, o lidar com situações de vida e morte, de decisões num curto espaço de tempo, de lidar com sintomatologia de doenças graves e de queixas por parte dos pacientes. É uma panóplia de fatores de risco a que os profissionais de saúde estão expostos, e que torna principalmente elevada a incidência de patologia associada a ansiedade e à depressão em profissionais de saúde.

“O SNS já trabalhava perto do seu limite”

Nós avaliámos o “burnout” especificamente no nosso hospital, em todas as categorias profissionais. Até à pouco tempo, era muito frequente esta avaliação de “burnout” na classe de enfermagem, e aquilo que tentamos fazer foi estender este estudo a todas as classes profissionais, mesmo aquelas que não lidavam diretamente com doentes. A grande conclusão a que chegámos, é que o “burnout” é transversal a todas as categorias profissionais do hospital. Relativamente aos médicos, aquilo que constatámos é que, uma das dimensões do “burnout”, que é a despersonalização , era particularmente elevada na classe médica em relação as outras categorias profissionais. A prevalência encontrada de “burnout” foi bastante elevada.

A pandemia da Covid-19 tem afetado os profissionais de saúde e os hospitais a vários níveis. Em relação à classe médica, quais são os principais desafios que esta tem enfrentado, durante este período?

Talvez o maior desafio tenha sido a necessidade de adaptação de uma forma extremamente rápida. Todo o hospital moldou o seu paradigma habitual de prestação de cuidados a doentes, de uma forma extremamente breve e rápida para dar resposta a um aumento avassalador de procura por doentes com suspeita ou confirmação de infeção por covid-19. O maior desafio foi esta possibilidade de adaptação muito rápida ao novo paradigma que se estabeleceu, que foi muito exigente.

A partir do momento em que os hospitais deixaram de efetuar cirurgias programadas, em que foram reduzidas inicialmente o número de consultas programadas, até se conseguirem fazer por teleconsulta, houve necessidade não só de readaptação de espaços físicos, mas também a necessidade de um reforço dos serviços de primeira linha de prestação de cuidados de saúde aos doentes covid. Nomeadamente o serviço de urgências, de cuidados intensivos, de doenças infecciosas, tiveram de ser reforçados do ponto de vista dos recursos humanos, para dar resposta a este embate. Toda esta mudança ocorreu num curtíssimo espaço de tempo, que foi absolutamente critica para o bom controlo da pandemia, que de facto se conseguiu efetuar no hospital.

Visto que esta adaptação teve de ser rápida, para garantir uma boa resposta a esses doentes, diria que foi isso que levou a este “burnout” da classe médica?

O SNS já trabalhava perto do seu limite, senão mesmo acima do seu limite e portanto, é evidente que um serviço que já está em constante tensão, muitas vezes por falta de recursos, se vê acrescido um stress adicional como a pandemia que vivemos, evidentemente, que a “manta” não chegará a todo o lado. Portanto o Serviço Nacional de Saúde irá sofrer na medida em que já anteriormente não estaria nas melhores condições. Este é um dos aspectos relevantes, de pré-pandemia. Em segundo lugar, temos a necessidade rápida de adaptação a esta situação, como referido anteriormente. Em terceiro lugar, diria que é o facto de esta ser uma doença nova, sobre a qual não temos muita informação, sobre o seu diagnóstico e tratamento.

Foi uma aprendizagem constante ao longo dos dias e portanto, a incerteza, a ausência de informação e de evidência científica sobre o que fazer aos doentes, causou muita ansiedade nos profissionais. Em último lugar, há que considerar que muitos profissionais de saúde, com medo de transmitirem a infeção aos seus familiares, optaram por se isolar e por sair de casa, e portanto este isolamento face à família não foi fácil de gerir e terá contribuído para este “burnout”.

Pode-se afirmar que este sentimento de “burnout” põe em causa a prestação de cuidados?

Numa fase inicial da pandemia, as atenções estavam muito concentradas neste primeiro embate. Portanto o objetivo seria, de facto, conseguir aplanar a curva da pandemia e com isso nunca sobrelotar o SNS e a sua capacidade de resposta. O SNS deu sempre resposta aquilo que lhe era exigido, nunca ultrapassou a sua capacidade de resposta e conseguiu sempre adaptar-se de forma a conseguir responder aos pedidos e aos doentes. Aquilo que se verificou, após a fase aguda de resposta, e à medida que o número de doentes internados e que o número de profissionais de saúde infetados ia diminuindo, foi o aumento de pedidos de avaliação por perturbação de ansiedade, de humor, por agravamento ás vezes de patologia psiquiatra prévia, que descompensou nesta altura. Foi quando as pessoas sentiram que tinham este primeiro impacto controlado, que se começaram a ressentir do enorme esforço que tiveram de fazer no inicio.

O que é que pode ser feito para se combater esta depressão e “burnout” dos médicos?

Há medidas que tomámos, no nosso hospital, que ajudaram a mitigar o “burnout” e este tipo de queixas. Estabelecemos uma plataforma na rede informática do hospital que permite, a partir de um auto-preenchimento de um questionário, fazer uma triagem das pessoas que precisariam de ser avaliadas por psiquiatria. Espontaneamente, as pessoas também poderiam recorrer ao serviço ocupacional do hospital e serem avaliadas, e se fosse o caso, serem referenciadas aos serviços de psiquiatria. Portanto, na realidade, houve um esforço grande por parte do hospital para tentar encontrar as pessoas que, de facto, precisariam de ajuda. Os casos identificados por nós e que tiveram necessidade de serem tratados por nós ou pelo serviço de psiquiatria, foram reencaminhados e estão a ser tratados nesse sentido. Isto em relação aos casos já existentes.

Depois, é também muito importante atuar preventivamente para evitar o aparecimento de novos casos ou de recaídas, nos casos já reconhecidos. Nessa perspectiva é muito importante que se dote o Sistema Nacional de Saúde dos recursos humanos, que ele necessita para continuar a dar uma resposta, com o nível de exigência que toda a sociedade exige ao SNS.

Em que medida é importante discutir este problema?

Foi uma ideia muito feliz, a discussão deste problema, uma vez que estas questões associadas ao “burnout” não são questões que estejam na primeira linha de discussão. Por isso, é muito importante sabermos que provavelmente estes casos que vão aparecendo são a ponta do “iceberg”, e o problema poderá até ser maior do que, aparentemente, parece ser. Nós verificamos casos concretos durante estes meses, de situações absolutamente dramáticas, de pessoas que se isolaram da família, que trabalharam muitos dias e horas consecutivas, numa pressão muito grande.

São casos que nos levam a pensar que a prioridade de atenção dada deverá ser reformulada, no sentido de dar mais atenção a este problema. O número de referenciações e o número de doentes e queixas que nós recebemos, permite-nos dizer que é um problema frequente, que é transversal a todas as categorias profissionais e que temos de valorizar não só esta componente clínica de sintomas que as pessoas apresentam, mas perceber que esta clínica de ansiedade e depressão pode prejudicar a própria capacidade cognitiva dos profissionais de saúde e, com isso, prejudicar o próprio serviço que prestam aos doentes.

Temos assim uma dupla responsabilidade, que é tratar os profissionais de saúde e com isso também ajudar a tratar os doentes, uma vez que é essa a principal função do SNS. Temos de assegurar que todos os seus intervenientes estão na sua capacidade máxima, estão saudáveis e isentos de doenças. É por isso extremamente importante tratar o “burnout” em profissionais de saúde.

AR/SO

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