31 Mai, 2023

Entrevista. “A diabetes não é apenas a glicemia”

Mafalda Marcelino, diretora do Serviço de Endocrinologia do Hospital das Forças Armadas (HFAR), alerta para a importância de se olhar para duas pandemias: diabetes e obesidade. Duas patologias que podem coexistir e que, atualmente, beneficiam dos avanços terapêuticos.

Estas são as 14.as Jornadas, qual tem sido a importância deste evento para o Serviço de Endocrinologia do HFAR?

Estas ações de formação exigem que os serviços se diferenciem e que partilhem boas práticas com os seus pares, nomeadamente com os colegas de Medicina Geral e Familiar (MGF) e Medicina Interna. A atualização de conhecimentos é fundamental para que se possa prestar cuidados de saúde de qualidade, com todos os benefícios para o doente e, até mesmo, para os serviços e os profissionais de saúde. Neste evento contamos sempre com a presença de internos e especialistas de diferentes unidades, o que é muito enriquecedor.

 

Este ano optaram por casos clínicos. A ideia é mesmo ser algo muito prático?

Nestas jornadas sempre quisemos trazer aos participantes questões muito práticas. Mas, este ano, com este formato também queremos promover uma partilha entre profissionais, que vão debater casos clínicos concretos. É a aproximação da teoria à prática, estimulando o diálogo e a participação de todos.

“… para além destes fármacos serem eficazes no controlo da glicemia, conferem também outro tipo de benefícios como proteção cardiovascular e de doença renal”

Também se vai realizar o Curso de Terapêuticas Injetáveis. Porquê esta temática?

A terapêutica com insulina é uma pedra basilar no tratamento da diabetes. A insulinoterapia tem evoluído muito nos últimos anos e é uma temática que reúne grande interesse por parte dos nossos conferencistas. Para além disso, nos últimos anos têm surgido outros fármacos injetáveis para o tratamento da diabetes tipo 2, que têm permitido otimizar a qualidade de vida dos doentes. Neste curso abordar-se-ão as diferentes insulinas e dispositivos e dar-se-á destaque às terapêuticas injetáveis, desde as suas indicações até ao seu manuseamento na prática clínica.

 

Que impacto têm tido as novas terapêuticas para a diabetes?

O impacto destas novas terapêuticas tem sido enorme, porque, para além destes fármacos serem eficazes no controlo da glicemia, conferem também outro tipo de benefícios como proteção cardiovascular e de doença renal, duas complicações comuns em doentes com diabetes. Têm também outra vantagem interessante por permitirem uma perda de peso, o que é especialmente útil na população com diabetes mellitus tipo 2, em que 90% das pessoas têm excesso de peso ou obesidade. Para além das vantagens anteriormente referidas, por terem também demonstrado um impacto na mortalidade da pessoa com diabetes, estes novos fármacos são considerados como modificadores de prognóstico.

 

São repostas que vão ao encontro das guidelines, de se olhar a diabetes num todo …

Sim, completamente alinhadas com as orientações mais recentes, em que a gestão da diabetes não se resume apenas ao controlo da glicemia. Atualmente, as orientações nacionais e internacionais são no sentido de se optar por fármacos cada vez mais seguros, que previnam as comorbilidades, principalmente a nível cardiorrenal, e que reduzam a mortalidade do doente com diabetes.

“Infelizmente, é sempre mais fácil tomar um comprimido do que modificar estilos de vida pouco saudáveis”

Considera que esta mais-valia também possa, por outro lado, diminuir a adesão à mudança de hábitos de vida saudável? Pode vencer a ideia de que basta um comprimido ou um injetável?

Infelizmente, é sempre mais fácil tomar um comprimido do que modificar estilos de vida pouco saudáveis. A educação para a saúde deve ser uma das grandes batalhas na abordagem da pessoa com diabetes, no que diz respeito a alimentação, exercício e até hábitos do sono. Se por um lado é fácil cair na tentação de se ficar pelos benefícios dos fármacos, sabemos que quem adota estilos de vida saudáveis pode conseguir resultados  ainda melhores com a utilização destes novos fármacos. Por outro lado, a utilização deste tipo de medicamentos na prática clínica também tem contribuído para uma maior adesão às medidas de estilo de vida, por motivar o doente para a perda ponderal.

 

No evento vão abordar diferentes complicações da diabetes, mas, numa das sessões, irá ser abordada a vacinação. Porquê?

A vacinação é fundamental e é mais uma medida preventiva que pode fazer toda a diferença na saúde de uma pessoa com diabetes. Felizmente, Portugal tem uma boa adesão à vacinação e isso foi visível inclusive durante a pandemia de covid-19. Nestes últimos 3 anos tomou-se maior consciência da importância das vacinas na prevenção e na diminuição do risco de complicações em determinadas doenças. As pessoas com diabetes são consideradas como um grupo de risco, para os quais é recomendado um determinado plano de vacinação.

“… é necessário sensibilizar os clínicos para que não negligenciem e sejam mais proativos no tratamento da obesidade”

Relativamente à obesidade, que também vai ser um dos temas em destaque, o que falta para que se dê mais atenção a esta doença?

Portugal foi pioneiro a considerar a obesidade como uma doença em 2004. Mas continuam a faltar duas importantes vertentes: a educação do doente para a tomada de estilos de vida mais saudáveis (com todas as medidas políticas e de saúde pública que isso implica) e a sensibilização dos profissionais de saúde para que também eles vejam a obesidade como uma doença.

Infelizmente, esta doença ainda é muitas vezes ignorada e negligenciada na prática clínica. Tratar adequadamente a obesidade permite controlar (ou mesmo curar) muitas das suas patologias associadas, como a diabetes, hipertensão, esteatose hepática, síndrome obstrutiva da apneia do sono, doenças articulares, entre outras. Para além das medidas de estilo de vida (que devem ser a base de qualquer abordagem), existem, hoje em dia, algumas alternativas de tratamento, quer no recurso a fármacos cada vez mais eficazes no tratamento da obesidade quer através da cirurgia bariátrica.

 

Pelo que me diz, deve-se investir mais na mudança de atitude junto dos profissionais de saúde…

Sim, é necessário sensibilizar os clínicos para que não negligenciem e sejam mais proativos no tratamento da obesidade. Mas também é precisar falar desta doença junto da população em geral, porque até alguns dos doentes não veem esta condição como uma patologia. Se tiverem essa consciência, mais facilmente vão pedir ajuda médica.

Além da diabetes, que outras patologias endocrinológicas vos preocupam?

A patologia da tiroide é muito prevalente, apesar da tiroide ser ainda uma glândula pouco conhecida. Estima-se que cerca de 10% da população terá doença tiroideia, o que inclui a doença nodular da tiroide e as chamadas disfunções tiroideas (hipertiroidismo e hipotiroidismo). A doença nodular da tiroide é muitíssimo prevalente, sobretudo quando o diagnóstico é feito por ecografia (em mulheres adultas pode ultrapassar os 50%). Muitos desconhecem-no e, face à sua benignidade, esses nódulos são frequentemente detetados em exames de rotina. De todos os nódulos, apenas 5% podem ser malignos. Em suma, apesar da diabetes, a obesidade e a patologia tiroidea serem as patologias mais prevalentes, quisemos também dar destaque a outros temos importantes na Endocrinologia como as alterações do metabolismo fosfo-cálcico, à suprarrenal e às alterações do crescimento e da puberdade.

Texto: Maria João Garcia

 

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