Entre Reformas e Falhas: por que o SNS precisa de mais que boa vontade
Administrador Hospitalar, PhD Saúde Internacional, Professor, Consultor

Entre Reformas e Falhas: por que o SNS precisa de mais que boa vontade

Estrutura organizacional, gestão e controlo interno como pilares para a sustentabilidade do sistema de saúde

Resumo

Este artigo analisa os desafios estruturais e de gestão enfrentados pelo setor da saúde em Portugal, com particular enfoque no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apesar das múltiplas reformas implementadas nas últimas décadas – desde a criação de centros hospitalares e empresarialização até à recente implementação das Unidades Locais de Saúde – persistem problemas crónicos relacionados com a subutilização de recursos, encerramento de serviços, défices de acessibilidade e insatisfação generalizada entre utentes e profissionais. O texto destaca o papel crítico do controlo interno, não apenas como uma obrigação legal, mas também como um instrumento estratégico para assegurar a eficácia, eficiência e transparência das operações. Argumenta-se que, sem estruturas sólidas de controlo e uma gestão eficaz, os esforços de reforma tornam-se insuficientes para garantir a confiança pública, a reputação institucional e, em última instância, a sustentabilidade do SNS.

Enquadramento

Nas últimas décadas, têm sido recorrentes as notícias de falhas críticas nas instituições do Estado Português, afetando setores como economia, finanças, proteção civil, defesa, administração interna, justiça, educação, saúde, entre outros. Essas fragilidades comprometem não apenas a reputação das instituições, mas também a confiança dos cidadãos.

A reputação institucional é um dos pilares fundamentais do Estado. Confiança gera reputação – e o contrário também é verdadeiro. Além disso, as variações na confiança, sobretudo em momentos críticos de conjunturas políticas, podem ter consequências graves para a estabilidade social e o ambiente democrático.

O desempenho das instituições públicas depende não apenas da sua estrutura, mas também da qualidade da sua gestão. Uma estrutura sólida, aliada a uma gestão competente, é capaz de fortalecer a reputação institucional, consolidar a confiança pública e gerar retornos significativos na esfera social e económica. (1)

Os casos que abalam a reputação das instituições do Estado têm sido particularmente frequentes desde o final da década de 1970:

  • As intervenções do Fundo Monetário Internacional na economia e finanças em 1977, 1983 e por fim a “troika” em 2011;
  • A queda da Ponte de Entre os Rios, em 2001, por falhas na manutenção de infraestruturas públicas que gerou a demissão do Ministro e seis secretários de Estado da área do equipamento social;
  • Os furtos de material de guerra na Carregueira em 2011, assim como Tancos e Santa Margarida em 2017;
  • Os relatórios dos incêndios de Pedrógão Grande e do Pinhal de Leiria em 2017 que apontaram falhas nos setores da agricultura, proteção civil e administração interna, e a aparente repetição de falhas em 2024;
  • O furto, detetado em 2017, de 57 pistolas Glock desviadas, durante um ano, da sede da Polícia de Segurança Pública;
  • O abatimento da Estrada Nacional 255 entre Borba e Vila Viçosa, em 2018, devido a falhas na manutenção e fiscalização de infraestruturas públicas;
  • A fuga de cinco reclusos do Estabelecimento Prisional de Alcoentre em 2024, as várias fugas prisionais que se seguiram ao 25 de Abril, e as quase 100 pessoas que conseguiram escapar das prisões nos últimos dez anos.

São do conhecimento geral muitos outros exemplos que, para alguns, indiciam a “Falência do Estado” (2) e estimulam prostração e insegurança.

O défice de estrutura e de gestão das instituições do Estado gera atraso no desenvolvimento económico do país. É um facto que o início do século XXI marcou o regresso da divergência de Portugal face à Europa mesmo relativamente “aos países que pertenciam ao outro lado da Cortina de Ferro e que entraram na esfera da União Europeia (UE)”. (3)

Também, a produtividade em Portugal continua abaixo da média da EU, em 2023. O país está entre os últimos colocados no ranking de produtividade laboral, atingindo cerca de 72-73% da média da Zona Euro. Apenas países como Bulgária, Grécia, Letónia e Roménia têm uma produtividade inferior. Este cenário tem-se mantido nos últimos anos, e Portugal tem perdido posições, sendo superado por países como Estónia, Letónia, Lituânia e Croácia​. (4)  (5)

Neste ponto, torna-se evidente que uma estrutura e uma gestão adequadas são capazes de minimizar as falhas no desempenho de cada entidade e, consequentemente, contribuir para o desenvolvimento económico do país. Neste contexto, a qualidade das políticas e dos procedimentos de controlo interno, concebidos e implementados pelos órgãos de gestão de cada entidade, revela-se crucial para assegurar: a realização económica, eficaz e eficiente dos seus objetivos; a conformidade com normas e políticas de gestão; a salvaguarda de bens e informações; a prevenção e deteção de fraudes e erros; bem como a qualidade dos registos contabilísticos e a elaboração atempada de informações financeiras e de gestão fiáveis.

Reconhecendo a importância de assegurar a reputação das instituições do Estado, importa questionar se o Governo dispõe efetivamente de um sistema de controlo interno ajustado à natureza, às características e aos riscos de cada Ministério e, dentro destes, de cada organização.

Discussão

No setor da saúde, particularmente no SNS, durante várias décadas, têm sido identificados os mesmos problemas (1), aparentemente sem solução:

  • Blocos operatórios subutilizados;
  • Serviços que só funcionam na parte da manhã;
  • Rotura dos serviços de urgência com encerramento desordenado;
  • Défice em acessibilidade e universalidade da cobertura;
  • Falta de coordenação entre os prestadores;
  • Insatisfação dos utentes;
  • Insatisfação dos profissionais;
  • Crescimento desequilibrado da despesa.

Estes problemas têm sido reconhecidos como estruturais (6), sendo múltiplas as iniciativas de procurar um modelo económico e de gestão ideais:

  • Criação de centros hospitalares (1999-2011);
  • Empresarialização (2002);
  • Parcerias público-privadas (2002-2009-2011);
  • Reforma dos cuidados de saúde primários (2005);
  • Rede de cuidados continuados (2006);
  • Hospitalização domiciliária (2018);
  • Transferência de competências para as autarquias (2019);
  • Novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) (2022);
  • Direção Executiva do SNS (2022);
  • Unidades Locais de Saúde (2024).

As sucessivas reformas são, geralmente, acompanhadas do aumento da despesa. Em 2022 a despesa total do SNS ascendeu a 14.032,4 milhões de euros, representando um aumento de 2.352,6 milhões de euros em relação a 2020 e cerca de 2,35 vezes superior a 2000 (5.977,7 milhões de euros) (PORDATA).

Em contrapartida, segundo o Observatório Europeu de Sistemas e Políticas de Saúde (7), também em 2022, quase 3% da população tinha necessidades de cuidados médicos não satisfeitas devido a custos excessivos, distância de deslocação ou tempos de espera. Esta percentagem foi superior à média da UE (2,2 %) e à taxa antes da pandemia (1,7 %). A percentagem de despesa em saúde financiada através de pagamentos diretos foi o dobro da média da UE. O número de utentes do SNS sem médico de família atribuído aumentou nos últimos anos.

No que reporta aos recursos humanos, apesar de a densidade de médicos em exercício em Portugal ser comparável à média da UE, o mesmo não acontece com os enfermeiros que, em 2021, era 13 % inferior à média. Por outro lado, a distribuição dos profissionais de saúde no país continua desigual, com 70% concentrados nas regiões de Lisboa e do Norte. (7)

No que respeita ao controlo interno, as iniciativas da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) remontam a 2007, quando foram lançadas ações de apoio às diversas unidades hospitalares para o desenvolvimento dos seus próprios manuais de procedimentos. Com esse propósito, foram divulgadas as melhores práticas de controlo aplicáveis aos principais processos da atividade hospitalar, tendo em consideração o seu impacto operacional e financeiro:

  • Manual de procedimentos administrativos e contabilísticos:
    • Contabilidade geral / orçamental / analítica;
    • Gestão de contas a pagar;
    • Gestão de contas a receber;
    • Gestão de compras;
    • Gestão de recursos humanos;
    • Gestão de tesouraria;
    • Gestão de imobilizado;
    • Logística / Farmácia;
    • Produção;
  • Manual de Auditoria Interna;
  • Metodologia de gestão de risco.

Nessa altura, o controlo interno era definido como um processo a efetivar pelos conselhos de administração, direção e colaboradores, devendo ser concebido para proporcionar confiança na concretização dos objetivos organizacionais, assegurar a eficácia e eficiência das operações e salvaguarda dos “ativos” da entidade, a fiabilidade da informação financeira, e a conformidade com a legislação e regulamentos aplicáveis.

Cabia ao conselho de administração de cada entidade desenvolver e adaptar esses manuais à sua realidade específica, respeitando as melhores práticas identificadas. No entanto, nos anos subsequentes, não se registaram desenvolvimentos relevantes que permitissem monitorizar a implementação efetiva dos referidos manuais de procedimentos.

Entretanto, em 2021, no âmbito do Regime Geral de Prevenção da Corrupção (Decreto-Lei n.º 109-E/2021, de 9 de dezembro), foi estabelecida a obrigatoriedade de implementação de sistemas de controlo interno que assegurem a efetividade dos programas de cumprimento normativo (compliance), bem como a transparência e a imparcialidade nos processos e decisões. Entre os elementos essenciais, destacam-se:

  • Manuais de procedimentos de controlo interno baseados em modelos adequados de gestão dos riscos, de informação e de comunicação;
  • Políticas de transparência administrativa, com a divulgação de informações e documentos legalmente exigíveis ou de interesse público;
  • Medidas de prevenção de conflito de interesses, promovendo a imparcialidade de dirigentes e colaboradores;
  • Adoção de práticas que fomentem a concorrência na contratação pública, minimizando entraves administrativos e o uso excessivo do ajuste direto.

Assim, a conceção e a implementação de políticas e procedimentos de controlo interno pelos órgãos de gestão de cada entidade tornaram-se imperativas, estando previstas sanções – nomeadamente contraordenacionais – aplicáveis tanto ao setor público como ao setor privado, em casos de não adoção ou de adoção deficiente ou incompleta dos programas de cumprimento normativo.

Conclusão

Os problemas estruturais geram desacertos e falhas que evidenciam uma manifesta falta de proficiência nas instituições. Como consequência, quebram a confiança dos cidadãos, comprometem a reputação do Estado e fomentam a instabilidade social.

Por outro lado, tanto a estrutura como a gestão das instituições exercem influência direta no desenvolvimento económico do país e na produtividade laboral. Acresce que, sendo permanente a necessidade de inovação institucional, não existe – nem poderá existir – uma estrutura acabada e perfeita, devendo esta ser continuamente ajustada à estratégia e aos objetivos em evolução.

No âmbito da estrutura organizacional – entendida como o conjunto de leis, regulamentos, convenções, regras de gestão e outros instrumentos que definem como os recursos são empregues – as políticas e os procedimentos de controlo interno, concebidos e implementados pelos órgãos de gestão de cada entidade, assumem um papel crucial, sendo, além disso, obrigatórios por lei.

Neste contexto, compete à gestão não apenas utilizar a estrutura existente, mas também promover os ajustamentos necessários, alinhando-os ao planeamento, ao sistema de controlo interno e à avaliação dos resultados alcançados.

Referências 

  1. Bernardino M. Gestão em Saúde – Organização Interna dos Serviços. 2.a Edição. Coimbra: Almedina; 2025.
  2. LUSA PN. Manuel Alegre critica «falência do Estado» por «desleixo, incompetência e amiguismos». Observador [Internet]. 18 de outubro de 2017; Disponível em: https://observador.pt/2017/10/18/manuel-alegre-critica-falencia-do-estado-por-desleixo-incompetencia-e-amiguismos/?cache_bust=1706289726372
  3. Palma N. As causas do atraso português: repensar o passado para reinventar o presente. 4.a edição revista e atualizada. Alfragide – Portugal: D. Quixote; 2024.
  4. Leitão L. Há seis anos que Portugal está a afundar no ranking da produtividade europeia. ECO [Internet]. 4 de agosto de 2023; Disponível em: https://eco.sapo.pt/2023/08/04/ha-seis-anos-que-portugal-esta-a-afundar-no-ranking-da-produtividade-europeia/
  5. TPN. Portugal desce no ranking da produtividade europeia. The Portugal News [Internet]. 4 de agosto de 2023; Disponível em: https://www.theportugalnews.com/pt/noticias/2023-08-04/portugal-desce-no-ranking-da-produtividade-europeia/80140
  6. LUSA MC. Costa: «Há problemas estruturais do SNS que têm de ter resposta». Sábado [Internet]. 15 de junho de 2022; Disponível em: https://www.sabado.pt/ultima-hora/detalhe/costa-ha-problemas-estruturais-do-sns-que-tem-de-ter-resposta
  7. OECD. Portugal: Country Health Profile 2023. OECD Publishing; 2023.
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