Eis um tema curioso…
Como seres humanos, os médicos e os outros profissionais da saúde exercem a sua actividade regendo-se por princípios científicos e tecnológicos aos quais, em diferente medida, emprestam um suplemento emocional de empatia e de afecto e, frequentemente, condicionam as suas opções diagnósticas e terapêuticas com base em experiências pessoais, familiares e profissionais.
Poderão alguns discordar desta introdução e considerar que, a ser verdadeira, ela significa que tratamos os doentes não by the book, mas com base em juízos morais ou emocionais próprios que tenderiam a enviesar esse tratamento ou, no limite, a fazer-nos optar não pelo que é melhor para o doente mas por aquilo que pensamos que é melhor para o doente com base no nosso percurso individual.
Acredito que, na esmagadora maioria das situações, os médicos tratam os seus doentes com base na legis artis mas existirão casos em que, inevitavelmente, a sua própria história de vida os influenciará numa ou noutra decisão. Não entendo essa influência como positiva ou negativa mas, tão somente, uma porção indivisível do que significa ser médico. Esta profissão não se esgota, nem se pode esgotar, na aplicação racional e desprovida de sentimentos do que se aprende na faculdade e no quotidiano, sob pena de se perder aquela que é a essência da Medicina: o seu humanismo, a sua visão holística do paciente, a capacidade de interagir, de sentir, de sofrer e de saber incluir todos esses elementos na fórmula final.
Por isso, sempre afirmei que a inteligência artificial virá a ser cada vez mais um poderoso auxiliar da Medicina mas nunca a ultrapassará por lhe faltar o factor humano1.
Contudo, estas linhas de hoje procuram abordar algo um pouco diferente e surgem a propósito de um artigo publicado há quatro dias no “The New England Journal of Medicine”2.
Nesse pequeno artigo, um médico psiquiatra relata a sua experiência pessoal e o modo como o diagnóstico de um cancro renal avançado influenciou o seu relacionamento com os seus pacientes.
Face à sua própria doença, grave, este médico, até então capaz de estabelecer uma forte empatia com os problemas que lhe eram apresentados, passou a senti-los de um modo menos intenso, como se eles fossem irrelevantes face à seriedade da sua própria condição. Como ele referiu, do seu lado da secretária tudo passou a parecer diferente. Até o passar do tempo no relógio, marcando o desenrolar da nossa vida, passou a ter uma dimensão mais profunda.
Como será exercer Medicina quando a dor, a fadiga, o medo nos assombram? Devemos parar? Devemos prosseguir? Tornamo-nos piores médicos? Ou melhores? A nossa experiência pessoal irá interferir com as nossas decisões? Torná-las mais precisas ou mais subjectivas?
De um modo geral, os médicos são maus doentes. Num estudo publicado na revista “Lancet” há uns anos, referia-se que os médicos procuram ajuda tardiamente e, nesse estudo, médicos e sem-abrigo estavam equiparados no acesso aos cuidados de saúde, obviamente por razões distintas. Os médicos não reconhecem a tempo a necessidade de ajuda, não têm um médico de família, são relutantes em exprimir as suas queixas e receiam o estigma de estarem fragilizados perante os seus pares.
Nada disto torna os médicos maus médicos. Apenas péssimos doentes…
Nesta matéria, como em todas as outras, não existem regras claras e o bom-senso deve prevalecer.
Um médico pode ser acometido por uma doença que coloque em risco a saúde dos seus doentes se interferir com as suas competências motoras (no caso de um cirurgião), com os seus reflexos, com a sua memória ou se afectar a sua capacidade de interagir e de se relacionar com a sua equipa e com a sua instituição. Nestas situações, deverá ser o próprio a saber afastar-se e, se tal não ocorrer, deverá ser a hierarquia a promover esse afastamento, temporário ou definitivo.
Mas penso que, na maioria das vezes, a doença não interferirá com o desempenho de um médico. Poderá torná-lo um melhor ouvinte, por vezes o contrário, poderá moldar as suas decisões e estratégias de diagnóstico e tratamento, poderá torná-lo mais conservador ou mais interventivo na sua abordagem clínica, mas essas variações existem desde sempre na prática médica, fazem parte dela e não implicam a prestação de piores cuidados.
Um doente é tratado de forma diferente por dois médicos. Pode igualmente ser tratado de forma diferente pelo mesmo médico em dois momentos distintos da sua vida, com base na evolução do seu conhecimento, da sua experiência ou de situações pessoais como a doença. E a Medicina é suficientemente grande para albergar todas essas diferenças.
No caso do médico que originou esta minha reflexão, a sua esperança é de que a doença lhe ofereça bases genuínas para uma empatia que se possa traduzir numa melhor comunicação e na prestação de melhores cuidados aos seus doentes. Mas as dúvidas irão assaltá-lo, como acontece com todos nós, todos os dias por inúmeras razões.
Na presença de uma doença, um médico irá ter dias melhores e outros piores. Uns saberão melhor do que outros esconder as suas fragilidades e transformá-las em fonte de inspiração e resiliência. Uns irão esquecer-se da sua doença enquanto trabalham, outros tê-la-ão ainda mais vívida por estarem a lidar com doentes.
No fundo, os médicos lidam com seres fragilizados e, estando doentes, partilham com eles esse estado, o que pode proporcionar uma interacção mais próxima e, por isso, mais eficaz. Ou não.
Temos, ao longo das décadas, assistido a uma tremenda evolução na relação médico-doente, cada vez mais nivelada (por vezes demais…), cada vez mais aberta e partilhada. A coexistência num médico de uma doença, sobretudo crónica, terá efeitos diversos e dependentes de incontáveis variáveis, devendo sempre caber a cada um a avaliação do impacto final no seu desempenho.
A doença pode tornar-nos melhores médicos ou piores e temos, por isso, o dever de nos auto-avaliarmos e de percebermos se devemos continuar ou não.
Acredito que, como regra, a doença fará de nós seres mais humildes, mais humanos, mais compreensivos. E isso irá reflectir-se de um modo positivo no nosso trabalho e na nossa capacidade de imergir nos sintomas e receios dos nossos doentes.
Como sempre, a decisão final caberá a cada um de nós.
Mas, pelo menos, aprendamos a aceitar o nosso papel de doentes. E eu sei que não é fácil…
- Luís Gouveia Andrade, Inteligência Artificial e Medicina: Haverá Lugar para o Factor Humano?…; Rev Port Farmacoter, 2017;10: 53-55
- Adam P. Stern, Doctoring while Sick — Is Living with Cancer Making Me a Better or Worse Doctor? N Engl J Med 2018; 379, 20 set. 2018: 1104-1105